Euclides André Mance
IFIL, ALEP-UFPR
Introdução
A filosofia, desde a tradição moderna, trouxe contribuições
importantes à qualificação da práxis de libertação, em especial
quanto à crítica ética e política. É urgente, contudo, nos
perguntarmos pelo atual significado estratégico da categoria
práxis.
A atual definição que, em geral, se confere à práxis
possibilita a compreensão satisfatória de fenômenos
contemporâneos de dominação e libertação tão complexos que se
desdobram em meio a uma chamada "terceira revolução industrial"
na qual a robótica, a biotecnologia e sobretudo a comunicação de
massas, a informatização e a telemática alteram
significativamente as relações de dominação e exploração dos
povos de todo o mundo sob os códigos de um Capitalismo Mundial
Integrado ?
As teorias que operam com o conceito moderno de práxis --
que surgiu no século passado em meio ao processo de
industrialização e que sofreu algumas reformulações posteriores
-- nos possibilitam compreender as estratégias de dominação e
avaliar satisfatoriamente as estratégias de libertação em meio a
sociedades que se configuram cada vez mais como sociedades "pós-
industriais" ou "pós-modernas", como as denominam alguns?
Serão necessárias reformulações do conceito de práxis bem
como a construção de novas estratégias que o componham com outras
categorias elaboradas ou reelaboradas contemporaneamente para que
compreendamos adequadamente os processos de dominação/libertação
no Brasil atual e para que se torne possível aos movimentos
sociais uma ação transformadora que efetive uma sociedade mais
justa e democrática, suprimindo a produção da subjetividade que
se realiza segundo os códigos opressivos dominantes ?
Sob a inquietação dessas questões organizaremos nossa
reflexão em quatro momentos. Primeiramente analisaremos a
emergência da compreensão moderna da práxis, tratando de seu
núcleo central em Hegel e Marx, destacando a sua relação com a
necessidade, o desejo e o trabalho. Em seguida, retomaremos
alguns aspectos da sistematização feita por Adolfo Sánchez
Vázquez que se tornou um instrumento de divulgação da filosofia
da práxis na América Latina. Em terceiro lugar trataremos de
certos alargamentos contemporâneos da concepção de práxis,
resgatando alguns aportes de Emmanuel Lévinas, Enrique Dussel e
Félix Guattari, que nos possibilitem problematizar o conceito de
práxis face aos fenômenos contemporâneos de modelização da
subjetividade e singularização. Por fim trataremos dos movimentos
populares atuais e de sua práxis libertadora.
1. A Emergência da Compreensão Moderna da Práxis
A modernidade dos séculos XVIII e XIX tinha entre seus
objetivos fundamentais o esclarecimento e a emancipação dos
homens. É um momento histórico marcado pela valorização da razão
e da autonomia do indivíduo em contraposição à fé e à submissão a
superiores hierárquicos (fossem membros do clero ou governantes),
submissão essa que fora uma das marcas características do período
medieval. Tratava-se de vencer as "trevas da ignorância e do
preconceito", armando-se com a "luz da razão". A filosofia da
práxis surge em um contexto em que o mundo das essências
objetivas e transcendentes já fora metodicamente posto em dúvida,
em que o sujeito ganhara destaque desde a viragem antropológica
do "Penso, logo Sou" que se desdobra na cisão entre res extensa e
res cogitans, sendo esta última a dimensão da subjetividade que
se torna o fundamento para a afirmação da verdade. Na vertente
moderna em que se construirá o conceito de práxis, a posição da
subjetividade passará a preceder a posição do objeto, enquanto
objeto de conhecimento. Afirmava-se um papel ativo da
subjetividade na produção do conhecimento.
Neste período a dialética moderna se constitui como um
movimento de síntese do conhecimento até tornar-se um movimento
histórico de auto-produção humana. Neste processo ocorrem três
momentos importantes na afirmação diferenciada da subjetividade.
No primeiro deles trata-se da afirmação de um Eu Transcendental
(Kant), sujeito do conhecimento que compreende os fenômenos
construídos pela própria subjetividade em sua interação com a
realidade objetiva; sujeito abstrato à margem da história. No
segundo momento têm-se a superação do Eu Transcendental em um
Espírito Absoluto (Hegel), sujeito da história que em seu
movimento dialético efetiva a realidade objetiva e que ao
apropriar-se dela enquanto idéia, supera a alienação, conhecendo-
se a si mesmo. E por fim, a negação o Espírito Absoluto em um
horizonte antropológico da luta de classes (Marx), afirmando-se
que são os homens os sujeitos da história. A realidade objetiva é
produzida por homens que, no capitalismo, estão necessariamente
divididos em classes, divisão essa que mantém a alienação.
Assim, a superação da alienação exige não apenas a compreensão do
movimento dialético da produção da realidade e, conseqüentemente,
a compreensão de cada sujeito como membro de uma classe, mas
fundamentalmente a superação da divisão de classes.
Embora nesses três momentos o ideal moderno que se pretende
realizar é o de esclarecimento e emancipação dos homens, há
diferenças fundamentais entre eles. Para Kant, o esclarecimento,
que no campo da convivência exige ao homem seguir os imperativos
categóricos da razão, levaria à superação da minoridade e a uma
vivência ética emancipada. Para Hegel, o movimento dialético da
História, do Espírito Absoluto, como práxis, superando a
alienação levaria à afirmação universal de uma eticidade, voltada
ao bem comum, vivenciada pelo citoyen em um Estado que é a plena
efetivação da Idéia de Liberdade, superando a moralidade burguesa
da sociedade civil, onde os interesses privados do bourgeois se
desdobram no plano da sua particularidade. Para Marx, o
movimento dialético da história como práxis das classes sociais,
a partir da tomada de consciência de si mesma da classe
trabalhadora (esclarecimento) e de sua luta pela sua própria
libertação, levaria à destruição da sociedade de classes, do
Estado burguês e da propriedade privada (emancipação), garantindo
uma superior efetivação da universalidade do humano, que pode
agora apropriar-se de si mesmo no "Reino da Liberdade" que se
inicia na sociedade comunista e que se desdobra para além de sua
configuração.
Assim, a práxis, a partir de Hegel e Marx, é uma categoria
integradora da metodologia dialética, da ontologia dialética e da
lógica dialética que se tornam indissociáveis, seja no idealismo
hegeliano ou no materialismo marxiano. A práxis torna-se um
movimento da subjetividade que, ao se exteriorizar, efetiva-se
como objeto tornando-se realidade (wirklichkeit) e que,
mediatamente, ao voltar-se teoricamente sobre si mesma --
enquanto realidade exteriorizada como objeto -- se reapropria
como idéia, negada em uma totalidade que lhe impõe novas
determinações essenciais. A práxis torna-se um movimento que
possibilita a compreensão da realidade que é efetivamente
contraditória, ao sintetizar no conceito o ser e suas
determinações históricas essenciais em um processo de
totalização. É justamente isso o que possibilitará a crítica
teórica das ideologias que se constroem a partir de
representações (Vorstellung) e não dos conceitos (begriff). A
práxis torna-se também a ação prática emancipadora do homem, que
lhe abre inúmeras possibilidades de realização histórica.
A diferença fundamental entre Hegel e Marx é que para o
primeiro, o movimento dialético da história é um devir que tem
sua razão de ser no auto-conhecimento do Espírito, ao passo que
para o segundo, o movimento dialético da história possui uma base
materialista, em que se destacam as necessidades reais dos
homens, desde a qual a consciência se desdobra.
1.1. Práxis e Subjetividade em Hegel
-- o trabalho e o desejo
Em Hegel a práxis pode ser compreendida tanto como a
atividade absoluta e universal do Espírito, como também, a
atividade do Espírito sob a forma específica de atividade humana
no trabalho. Na história da filosofia, Hegel foi o primeiro
pensador a tratar filosoficamente a fundo a ação humana
transformadora e produtora de objetos materiais.
Em Fragmento de Sistema(1800) e Sistema da Moralidade
(1802), o trabalho é compreendido como a destruição utilitária de
um objeto, transformando-o em outro objeto, a partir de uma
idealização prévia, isto é, de uma finalidade. O trabalho
estabelece uma relação peculiar entre homens e objetos. Nesta
relação se unem o objetivo e o subjetivo, o geral e o particular,
por intermédio das ferramentas. A ferramenta, subjetivamente, é
preparada e utilizada pelo trabalhador, mas objetivamente está
voltada ao objeto do trabalho que a determina. Na ferramenta a
subjetividade do trabalho se generaliza como mediação de um modo
universalizável de trabalho.
Em Filosofia da Realidade (1º curso 1803-1804; 2º curso
1805-1806) o trabalho é compreendido como mediação da auto-
produção do homem, bem como analisado em relação ao desejo e em
relação ao objeto do trabalho. No primeiro curso, ao tratar da
dialética da consciência, Hegel distingue a sua dinâmica teórica,
que envolve a memória e a linguagem como primeiras formas de
realização da síntese sujeito e objeto, da sua dinâmica prática,
onde o desejo, através do trabalho, promove a síntese sujeito e
objeto.
O desejo animal é dirigido ao objeto para destrui-lo
imediatamente. Neste caso imediatamente nega-se o objeto que é
destruído, como também imediatamente nega-se o desejo que fica
satisfeito. O desejo humano, por outro lado, está aberto a
mediações, sendo a principal delas o trabalho, que transforma o
objeto e, mediatamente, o desejo. O trabalho é, assim, a mediação
entre a destruição do objeto e a satisfação do desejo, que tanto
transforma o objeto tornando-o mais aprazível como também
transforma o desejo, humanizando-o, refinando-o. O caráter social
do trabalho advém desta relação intrínseca que mantém com a
necessidade, com o desejo. O trabalho satisfaz mediatamente uma
necessidade; com isso, a satisfação imediata dá lugar a uma
satisfação ideal e possível, adquirindo o trabalho um caráter
universal e abstrato que pode satisfazer as necessidades de
todos. Por outro lado, o homem se humaniza ao mediar o trabalho
entre desejo e satisfação.
Para satisfazer mediatamente o desejo através do trabalho
que transforma a natureza, o homem cria instrumentos, que vão
sendo cada vez mais qualificados. Com o surgimento das máquinas e
a divisão do trabalho, analisa Hegel, passa a ocorrer uma
interdependência cada vez maior na satisfação das necessidades
humanas, e o trabalho se torna mais abstrato e universal, uma
vez que os indivíduos trabalham para satisfazer as necessidades
de muitos outros e, por fim, surge um conjunto de conseqüências
negativas da humanização pelo trabalho, grande parte delas em
razão da moralidade burguesa.
Na Fenomenologia do Espírito (1807), o trabalho é
manifestação do desenvolvimento do Espírito que se conhece a si
mesmo enquanto identidade do sujeito e objeto no processo
dinâmico do devir histórico. Partindo do saber imediato,
individual, passando por inúmeras mediações, o movimento da
consciência chega ao Saber Absoluto, compreendendo que tudo é
manifestação do Espírito, chegando à auto-consciência.
Entretanto, afirma Hegel que "a auto-consciência somente atinge
sua satisfação em outra auto-consciência" (1). A singularidade da
auto-consciência não se satisfaz com a realização do desejo de
uma coisa. É necessário que a consciência seja reconhecida por
outras consciências, que ela se converta em objeto de outro
desejo. Pois como afirma Vázquez, comentando esta passagem de
Hegel, " um homem somente satisfaz seu desejo humano quando outro
homem lhe reconhece um valor humano. (...) Desejar, pois, é
desejar ser reconhecido." (2). Como a essência humana não se
realiza em um indivíduo isolado, mas na coletividade, o indivíduo
deseja o reconhecimento de outra consciência que, então, se
afirma coletivamente. Como cada consciência deseja tal
reconhecimento, surge o conflito e a luta de consciências. Assim,
o desejo de reconhecimento leva a uma luta mortal. " O indivíduo
que não arriscou a vida pode, sem dúvida, ser reconhecido como
pessoa -- afirma Hegel --, mas não alcançou a verdade deste
reconhecimento como reconhecimento de uma auto-consciência
independente. E, do mesmo modo, cada qual tem que tender à morte
do outro, quando expõe sua vida, pois o outro não vale para ele
mais do que vale ele próprio..." (3). Entretanto, se a luta
suprimisse todos os que não aceitam o reconhecimento do Eu, a
morte privaria de sentido esta vitória, pois não haveria ninguém
que o reconhecesse. Assegurar-se-á o reconhecimento do Eu,
deixando com vida o outro vencido, ao qual o Eu se impõe como
Senhor, mantendo o outro na posição de escravo. Esta luta
apresentada por Hegel de forma abstrata corresponde ao movimento
do Espírito em busca do seu auto-conhecimento pleno. Arriscando a
vida natural, o senhor alcança o seu reconhecimento espiritual, e
submete materialmente o escravo. Temendo a morte o escravo
renuncia ser reconhecido e submete-se a trabalhar para o senhor.
Entretanto, pelo trabalho, a subjetividade do escravo torna-se
produto objetivo, podendo reconhecer-se nos produtos que cria ao
transformar a matéria, tomando consciência de si enquanto humano.
O escravo tem consciência de sua liberdade no processo de
trabalho e sua superioridade ao senhor que fica à margem do
processo produtivo.
Tem-se, portanto, que o desejo de reconhecimento é
fundamento da luta do Senhor e do Escravo, figura que simboliza
as contradições sociais no campo da comunidade econômica. No
processo histórico, a subjetividade, em Hegel, é apropriada pela
razão mediante sua ex-posição objetiva, através da práxis --
compreendida como atividade efetivadora. A dimensão desejante
humana é superada pela mediação do trabalho e pelo reconhecimento
do mesmo por outra auto-consciência. O outro é subsumido na
totalidade como mediação para o reconhecimento do Eu Absoluto.
1.2. Práxis e Subjetividade em Marx
-- O trabalho, a necessidade e o desejo.
Para Marx o papel da filosofia não é apenas compreender
racionalmente o mundo -- pois "a alienação da vida humana
permanece e continua sendo tanto maior, quanto mais consciência
dela como tal se tem" (4) -- mas contribuir para a sua
transformação efetiva. Para transformar a sociedade é necessário
uma crítica radical (filosofia da práxis) e a mediação histórica
do proletariado que promove a revolução respondendo a
necessidades radicais humanas, conquistando a emancipação dos
homens, "... a apropriação sensível pelo homem e para o homem da
essência e da vida humanas, do homem objetivo, das obras
humanas..." (5). Necessita-se, pois, da crítica teórica e da
prática. Se a teoria por si só é inoperante, o proletariado, por
outro lado, não poderia se emancipar sem a filosofia. " Assim,
como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o
proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais" (6).
A práxis é compreendida como atividade humana, real,
efetiva e transformadora. A práxis originária é o trabalho
humano, a produção material, que esclarece a práxis social e a
história como auto-produção do homem por si mesmo. O trabalho
humano é a objetivação da subjetividade, fonte subjetiva de todo
valor e de toda riqueza; e na medida em que o indivíduo não
reconhece em cada objeto a subjetividade humana, está alienado.
É pela práxis que o homem se humaniza. Para humanizar-se o
homem não pode permanecer em sua subjetividade, necessita
objetivar-se, o que só pode ocorrer através da práxis. O trabalho
humano é a práxis fundamental. Através dela o homem se faz
presente como ser social, humaniza a natureza e humaniza-se
enquanto se eleva como ser consciente sobre sua própria natureza
e cultura. A produção tem assim, por um lado, um conteúdo
econômico vinculado à produção de objetos úteis que satisfaçam
necessidades humanas, e por outro, um conteúdo filosófico
vinculado à auto-produção ou auto-criação do homem.
A produção existe, basicamente, em função das necessidades.
O homem é um ser de necessidades e produz para satisfazê-las. Se
o animal só produz imediatamente sob o império da necessidade, o
homem o faz mediatamente. Libertando-se de suas necessidades,
elas perdem seu caráter instintivo, natural e são satisfeitas e
recriadas de modo humano. O homem não é apenas um ser de
necessidades naturais, mas inventa e cria suas próprias
necessidades, superando seu ser natural, auto-produzindo-se.
Em um capítulo dos Manuscritos Econômico-filosóficos
(1844), Marx trata do significado da necessidade no capitalismo .
Afirma Marx que no sistema capitalista especula-se como criar no
outro novas necessidades, para levá-lo a um novo sacrifício em
vista de satisfazê-las, para levá-lo a uma nova dependência, para
desviá-lo para uma nova forma de gozo; enfim, para levá-lo à
ruína econômica.
Busca-se no capitalismo criar uma força essencial estranha
sobre o outro, para satisfazer o carecimento egoísta do mesmo.
Cria-se, dessa forma, necessidades de apropriação de objetos. "A
necessidade do dinheiro [ para apropriar-se dos objetos ] -- diz
Marx -- é assim a verdadeira necessidade produzida pela economia-
política e a única necessidade que ela produz. (...) O aumento da
produção e das necessidades se converte no escravo engenhoso e
sempre calculador de apetites humanos, refinados, anti-naturais e
imaginários -- a propriedade privada não sabe fazer da
necessidade bruta necessidade humana; seu idealismo é a fantasia,
a arbitrariedade, o capricho..." (7).
O produto torna-se uma isca para atrair o ser dos outros, o
seu dinheiro. "Toda necessidade real ou possível -- afirma Marx -
- é uma fraqueza que arrastará as moscas ao melado -- exploração
universal da essência coletiva do homem." (8). A afirmação
inconfessada do capitalista é essa: "... engano-te, enquanto te
proporciono o gozo"! (9). O capitalista torna-se, assim, um
proxeneta, um "cafetão" , alguém que ganha dinheiro servindo de
intermediário em casos amorosos, um explorador da prostituição de
outrem (10). Ao sucumbir à sedução enganadora, alienando-se de
sua subjetividade objetivada no dinheiro que troca pelo objeto, o
homem se prostitui em uma relação desejante eternamente
insatisfeita que não o humaniza, convertendo-se em escravo
daquele que mobiliza o seu desejo. O capitalista desperta no
outro "apetites mórbidos e espreita todas as suas fraquezas, para
exigir dele depois, a propina por estes bons serviços" (11).
A alienação vincula-se, contudo, tanto a esse refinamento
das necessidades sob a lógica da propriedade privada, quanto à
privação da satisfação das necessidades elementares. Em ambos os
casos mutila-se a sensibilidade humana. A luz, o ar livre, a
limpeza, a moradia salubre, a alimentação e tantos outros itens
necessários à uma vida humana são negados à maioria, que vive na
miséria, determinando novos sentidos e qualidades de percepção
sensorial embrutecidas. Por outro lado desejos produzidos
engenhosamente como mediação de acúmulo de capital por terceiros,
tornam-se necessidades culturais alienantes. Com isto, nenhum dos
sentidos, sejam físicos (visão, audição, olfato, tato e paladar),
espirituais, práticos (vontade, amor, etc), existe mais em seu
modo humano ou animal.
Para Marx, somente com a superação da propriedade privada
seria possível a "emancipação total de todos os sentidos e
qualidades humanas" (12) que se fizeram humanas objetiva e
subjetivamente. Quanto a essa emancipação total, que é a negação
da negação da humanidade que fora realizada pelo capital, afirma
ele em uma passagem muito interessante dos Manuscritos que o
comunismo é o "momento da emancipação e recuperação humanas,
momento efetivo e necessário para o movimento histórico seguinte.
O comunismo é a configuração necessária e o princípio energético
do futuro próximo, mas o comunismo não é como tal, o objetivo do
desenvolvimento humano, a configuração da sociedade humana" (13).
A realização subjetiva-objetiva de uma humanidade emancipada
extrapolaria os contornos do comunismo que, como base material,
lhe daria suporte a sínteses culturalmente mais elevadas. Se a
alienação de todos os sentidos físicos e espirituais engendrou a
afirmação do sentido do ter, o comunismo, destruindo a
propriedade privada capitalista possibilitaria materialmente a
desalienação de todos os sentidos (14) e o refinamento das
sensações e paixões humanas que não são apenas determinações
antropológicas mas afirmações ontológicas que atingirão novos
sentidos em novos modos de existência (15).
No capitalismo, contudo, mobilizados pela necessidade
material insatisfeita em razão da propriedade privada, os
trabalhadores são uma classe em si que vende sua força de
trabalho para a classe que detem os meios de produção. A classe
dominante que mantém a alienação do trabalho cria também
necessidades culturais, apetites mórbidos que, em troca de certo
gozo, possibilita ao capitalista acumular o dinheiro que
pertencia ao consumidor. Além disso, divulga ideologias que
propõem formas de satisfazer necessidades mantendo a propriedade
privada. Compreendendo a relação de sua situação econômica com a
situação política e ideológica, com o direito assegurado pelo
Estado, a classe trabalhadora em si torna-se classe para si ao
perceber as contradições do capitalismo e sua situação de classe,
desmontando as ideologias, chegando ao momento de sua auto-
consciência, afirmando seu valor. Organizando-se para enfrentar a
exploração e opressão passa a ação prática efetiva que ruma para
a revolução do proletariado.
A luta pela satisfação das necessidades e apropriação real
da sua subjetividade objetivamente exteriorizada no produto é o
que move a classe trabalhadora em sua luta contra a classe dos
que detém os meios de produção e circulação.
2. A Sistematização da Filosofia da Práxis
em Adolfo Sánchez Vázquez
A tese de doutorado defendida por Vázquez em Março de 1966,
publicada posteriormente com algumas alterações e ampliações sob
o título de Filosofia de la Práxis, tornou-se um importante
instrumento de divulgação da concepção marxista de práxis. Nesta
obra, ele recolhe a contribuição de diversos pensadores, entre
eles Lênin e Gramsci.
Lênin repensou a práxis sob o ponto de vista da estratégia
e das táticas políticas. Partindo do princípio que a luta de
classes era uma espécie de "guerra civil oculta", ele inverte a
máxima do general prussiano e estrategista militar Carl Von
Klausewitz que afirmava ser a guerra uma simples continuação
da política por outros meios (16) , defendendo a concepção de que
a política é a simples continuação da guerra por outros meios
(17). Lênin transportará, então, para o campo da política a
estratégia e os conceitos militares que tomarão corpo no Estado
Bolchevique e em elaborações de estrategistas da III
Internacional. Ao aplicar-se na política o paradigma da guerra,
militarizou-se a política e esquadrinhou-se um perfil de
subjetividade do militante, disciplinado como um soldado a
executar as diretrizes sob um modelo de centralismo; na política
era necessário pensar como derrotar o inimigo e vencer a guerra -
- como derrotar o inimigo de classe, do Estado Revolucionário, do
Partido Dirigente. O paradigma militar teve desdobramentos
diferenciados na tradição marxista conforme os contextos
históricos, indo desde a guerra de movimento e guerra de posição
em Gramsci à guerra popular de Mao Tsé-Tung. Deve-se mencionar
também que o regime stalinista, apoiando-se em conceitos
leninistas, deturpando alguns e abstraindo outros, assentou-se
firmemente em teses militaristas que levaram à eliminação física
de inúmeros "inimigos do Estado Revolucionário".
O que importa salientar é que a partir de Lênin a práxis
política da classe para si que fará a revolução superadora do
capitalismo, tem por referência um paralelo de estratégia militar
tanto na organização do movimento operário e do partido
comunista, quanto na execução militante das ações. O partido
seria a mediação entre a teoria revolucionária (a filosofia da
práxis e a estratégia política) e a ação do proletariado.
Alguns elementos da concepção leninista e gramsciana de
práxis política encontraremos na obra de Sánchez Vázquez que,
ainda hoje, norteia em grande parte da América Latina a atuação
de movimentos de libertação.
Ao tratar de alguns problemas filosóficos em torno à
práxis, Vázquez demarca tal conceito em um campo próprio à
tradição moderna reduzindo a subjetividade à sua dimensão
racional e promotora de transformações objetivas pelo uso da
força, normalmente mobilizada por necessidades materiais --
naturais ou culturais. A subjetividade mais ampla em seu plano
passional, desejante, articulado a um imaginário utópico bem como
as mobilizações subjetivas da práxis não ganham maior destaque.
A práxis fica compreendida como a atividade em que um
sujeito ativo modifica a matéria-prima -- que podem ser entes
naturais, produtos de uma práxis anterior ou o próprio ser
humano. Esta atividade, que é dirigida ao objeto para transformá-
lo, desdobra-se em seu momento teórico na compreensão da matéria-
prima, dos instrumentos de intervenção e de como manipulá-los,
bem como no estabelecimento de uma finalidade, isto é, de um
resultado que se idealiza alcançar; em seu momento prático trata-
se da ação efetivadora que atinge um resultado real, objetivo,
efetivo. O fim, aquilo que não se alcançou materialmente, nega a
realidade efetiva, afirma outra que não existe; é produto da
consciência e regido por ela. A prática transforma o mundo
exterior que, como tal, independe da consciência do transformador
e resulta em uma realidade nova. Têm-se pois, a realidade
objetiva da matéria-prima, a ação cognoscitiva do agente sobre
ela, a ação teleológica idealizando sua mudança e a ação
efetivadora que resulta em um produto real -- imprimindo uma nova
forma na matéria -- como os elementos iniciais e básicos ao
estudo da práxis. A práxis fica assim reduzida, em seu núcleo
central, à relação dialética entre teoria e prática efetivadora.
As formas da práxis dependerão da matéria-prima. Destacam-
se, contudo, duas formas de práxis: a produtiva que, sendo a
práxis fundamental ao plano da infra-estrutura econômica, suporta
e determina as outras formas de práxis, e a práxis política em
que a relação teoria e prática exige um alto grau de elaboração -
- uma vez que sua matéria-prima são as classes sociais em
contradição de interesses e em luta -- para que seja
satisfatoriamente consciente, organizada, dirigida e eficaz. Em
razão de tais exigências da práxis política torna-se necessária a
existência de um partido, no seio do qual se construirão as
estratégias e táticas para a luta (18).
Na práxis política, como em toda forma de práxis, embricam-
se a teoria e a prática. Aqui também a teoria se desdobra em
dois planos, cognoscitivo e teleológico. No primeiro caso, trata-
se de compreender ontologicamente a realidade concreta. Há que
desenvolver-se um movimento dialético que, partindo do todo
fragmentado, através de uma abstração analítica em que se
desvendam as mediações e contradições da realidade, chega-se a
uma síntese compreensiva da totalidade concreta e de suas
múltiplas determinações. Essa síntese, compondo conceitos que
são a unidade dialética do ser e sua essência histórica, é a base
de toda teoria crítica que possibilita refutar todas as
representações ideológicas sobre a realidade, bem como distinguir
a práxis da anti-práxis. (19)
Na tradição política que subjaz ao conceito de práxis
política de Vázquez, esse momento cognoscitivo é normalmente
subdividido na análise estrutural e na análise conjuntural da
realidade efetiva (20). Na análise estrutural, em um certo nível
de totalização, busca-se compreender algumas dimensões da
totalidade concreta, em especial, as dimensões econômica,
política e ideológica. Ao plano da dimensão econômica, analisa-
se a formação do capital: a sua composição técnica -- divisão e
interrelação do capital no setores agrário, industrial,
comercial, serviços e financeiro -- bem como a sua composição
social -- a divisão de classes. Ao âmbito da dimensão política
analisa-se, basicamente, a organização do Estado e os projetos
políticos em conflito. Já ao plano da dimensão ideológica analisa-
se a disposição dos equipamentos e mecanismos de formação da
representação de mundo. Por sua vez, na análise de conjuntura o
objeto de investigação é a correlação de forças entre as classes,
bem como o alinhamento dos sujeitos sociais quanto à manutenção
ou transformação das estruturas econômicas, políticas e
ideológicas.
O momento teleológico da práxis política se desdobra na
definição de objetivos a serem perseguidos e que afetem as
estruturas já analisadas, bem como na organização de uma
estratégia eficaz no seio daquela totalidade compondo diversas
ações articuladas para alcançar os objetivos propostos e, ainda,
na definição de táticas apropriadas à conjuntura em constante
mutação.
A prática política é considerada como a ação efetiva que
transforma o objeto -- as classes ou grupos sociais, a sociedade
inteira, as relações econômicas, políticas e ideológicas. A
práxis política, unidade da teoria com a ação prática
efetivadora, busca intervir sobre as bases econômicas e sociais
em que se assenta o poder material e espiritual da classe
dominante. Para transformar a matéria, afirma Sánchez Vázquez, é
necessário o uso da força, isto é, a violência (21). A
resistência da matéria social exige a violência que se exerce
contra o corpo para mudar a consciência. Além de resistir à
violência, a matéria social pode atuar contra-violentamente
realizando, assim, o que Sánchez Vázquez denomina anti-práxis.
Para Vázquez, como a sociedade de classes é regida pela
violência (22), os revolucionários também deverão usá-la a fim de
destruir a própria sociedade de classes e construir uma nova
sociedade regida por princípios éticos elevados. A violência
revolucionária é eticamente justa, pois visa acabar com toda a
violência. Salienta, entretanto, que não se deve compreender a
violência metafisicamente como força motriz da história, o que
seria um equívoco. Entretanto, ao afirmar o conceito de práxis
como uso da força que imprime uma forma na matéria, e ao definir
violência como uso da força, irremediavelmente toda práxis será
violenta.
Observa-se que em Filosofia de la Práxis a subjetividade
humana fica reduzida à abstração de uma dimensão teórica que se
objetiva por uma ação efetivadora mobilizada por necessidades
históricas, desconsiderando a importância da dimensão passional,
desejante como intrínseca à práxis. Tem-se a afirmação da
totalidade ontológica como o horizonte teórico necessário à
revolução, desde o qual os indivíduos são compreendidos
conceitualmente a partir da luta de classes -- que é a
determinação histórica essencial. A práxis política por sua vez
aponta para uma intervenção sobre a subjetividade a partir da
luta ideológica -- a persuasão teórica que, fundamentalmente,
refuta representações no plano cognoscitivo e objetivos
teleológicos mantenedores das estruturas -- e da violência
corporal quando se redobre a resistência da matéria à persuasão
teórica ou se estabeleça a anti-práxis.
3. Alguns alargamentos contemporâneos da concepção de práxis
3.1. Emmanuel Lévinas : Subjetividade e Alteridade
Embora Lévinas não tenha eleito a práxis, enquanto tal,
como temática de sua reflexão, a sua filosofia é rica em
considerações sobre o exercício efetivo da práxis social. Em sua
filosofia tem-se a afirmação de uma noção distinta de
subjetividade em relação aos pensadores que aqui tratamos
anteriormente. Em Totalité et Infini (1961) Lévinas desenvolve
uma crítica ética à práxis dominadora e à sua legitimação
ontológica. Afirmando a categoria de exterioridade, Lévinas
propõe a ruptura das totalidades em que a subjetividade do outro
e sua alteridade, acabam reduzidas a um conceito que recebe um
sentido a partir de um projeto fundamental, fundamento esse que
na história da humanidade acabará sempre legitimando o exercício
do poder autoritário que se efetiva sobre o outro que já fora
teoricamente aprisionado ao mundo do mesmo na limitada extensão
de um simples ente. Para além da consciência do mesmo e de seu
projeto, há o outro e sua liberdade. À mesmidade da consciência
que reduz todo outro a um ente de seu mundo, somente o Desejo
pode transcender.
Lévinas trata de uma dimensão fenomenológica da
subjetividade que precede à consciência. Para ele a necessidade
ou o desejo (grafado com "d" minúsculo) é o primeiro movimento do
mesmo em busca da apropriação dos elementos que, sendo ou não
mediatizados pelo trabalho, levam ao gozo. Diferentemente deste
desejo enquanto necessidade, Lévinas constrói a categoria "Desejo
do Invisível" ou "Desejo do Infinito" (grafados com "D"
maiúsculo) para expressar o Desejo do ser humano à alteridade de
outro humano, que jamais se confundirá com o desejo consumista.
O outro, enquanto outro, está sempre para além das totalidades
ontológicas, para além da fenomenologia do olhar, que reduz o que
vê a um ente de seu mundo. O Outro enquanto alteridade não pode
ser reduzido a um ente em nossa consciência. Tal Desejo da
relação pessoa-pessoa é o Desejo do Invisível, pois o outro não
se reduz ao que vemos; é Desejo do Infinito porque o outro pode
sempre se manifestar infinitamente outro para além de nossos
conceitos já formulados. Este Desejo que nos move em direção ao
outro é um Desejo Metafísico, pois não se trata de um desejo da
apropriação do outro enquanto elemento do mundo (23). Na relação
face à face onde dois seres humanos se encontram, impõem-se a
dimensão ética do respeito pela alteridade. Pela sua palavra o
outro se manifesta outro e julga o mundo do mesmo. A proximidade
que se estabelece, exige a atenciosa escuta da palavra do outro e
a disposição de serviço. A linguagem, entretanto, não é espaço
para o conhecimento do outro, mas espaço do encontro e reencontro
do Eu com o Outro, historicamente situado como encontro de dois
mundos. Movido pelo Desejo do Invisível o homem se coloca a
serviço da justiça na relação com o outro.
A partir do Desejo do Invisível, Lévinas desenvolve uma
metafísica dinâmica -- posto que a essência de cada homem se abre
a infinitas possibilidades de realização -- que critica as
ontologias que haviam reduzido a subjetividade humana, a
alteridade, a um ente reduzível a um conceito. Afirma o outro
como exterioridade inabarcável nas totalidades ontológicas e
destaca a palavra como manifestação da subjetividade. Embora faça
a crítica das totalidades opressivas e construa uma ética que
exige o respeito à realização alterativa do outro, Lévinas não
formula, em Totalité et Infini , propostas consistentes voltadas
a transformações sociais, políticas e econômicas que se fazem
necessárias para a realização de uma sociedade onde se vivam os
princípios éticos que formula.
3.2. Enrique Dussel : Práxis e exterioridade
A grande questão que se levantou ao pensamento de Enrique
Dussel na década de 70 foi como abrir o metodologia dialética
(24) -- essencial a uma filosofia que se constrói articulada à
práxis de libertação dos oprimidos -- possibilitando a afirmação
de um novo horizonte ético e crítico desde a afirmação alterativa
da exterioridade. Se por um lado, o outro não pode ser subsumido
na totalidade ontológica construída na síntese dialética sem
negar-lhe a distinção, por outro lado a afirmação de um Desejo do
Invisível não lhe parecia consistente o bastante para a
construção de uma teoria eficaz ao processo de libertação latino-
americano que necessitava tratar da exploração econômica, da
dominação pedagógica, da dominação política, do machismo, da
discriminação racial e de tantas outras formas de opressão e de
mutilação do outro e de sua subjetividade (25).
Dussel então lançará mão de um recurso que será
simultaneamente a força e a fraqueza de sua teoria: a analogia.
Contrapondo ao logos da totalidade ontológica, o aná-logos que se
afirma desde a exterioridade metafísica, Dussel tenta equacionar
o seu problema (26). Através da analogia, embora o mesmo possa
pensar criticamente a ação do outro, não o reduz a um conceito,
afirmando-se que o outro, enquanto outro permanece exterior à
totalidade ontológica. Pela analogia, o movimento dialético,
tanto de compreensão do mundo quanto de ação transformadora,
supõe uma necessária abertura ética ao outro, à exterioridade.
Assim, o projeto do mesmo, sua teoria e sua prática podem ser
questionados e reformulados desde a palavra do oprimido, da
alteridade. E sendo tal abertura permanente, nenhum projeto de
libertação poderá descambar em totalitarismos. Por outro lado, um
mesmo conjunto de categorias analógicas poderiam ser utilizadas
para a crítica ética da economia, da política, da erótica, da
pedagógica e poderiam servir de referenciais à práxis de
libertação nessas diversas esferas.
A composição metodológica da dialética com esta abertura à
exterioridade será tentada de diversas formas. Em 1972 Dussel
propõe a composição de dois métodos: um método analético,
apropriado à abertura da palavra do outro -- o que possibilita
criticar eticamente o horizonte de sentido da totalidade --, e um
método dialético, que possibilita implementar as mediações da
práxis que busca responder à palavra interpelante (27). Em 1974
Dussel fala de um método dialético positivo que possibilita uma
crítica da compreensão cotidiana do mundo desvendando-lhe um
fundamento ontológico; que possibilita também, através de uma
passagem analética, a crítica ética da ontologia mediante a
abertura à interpelação da alteridade e que, finalmente, se
conclui em uma práxis analética que visa responder faticamente ao
apelo recebido (28). Em 1977 trata do método dialético positivo
que possui intrinsecamente um momento analético, no qual a
totalidade é questionada pela interpelação do outro, sendo a
escuta da palavra a exigência de uma consciência ética, que,
impossibilitada de interpretá-la adequadamente por advir de um
outro mundo e de uma outra história, a aceita, lançando-se o
interpelado à práxis de libertação do oprimido. Tal método
possuiria um movimento anadialético (29). Trata-se pois de abrir-
se à subjetividade do outro que se exterioriza pela palavra,
desde a qual é possível construir um outro sentido ao mundo de
ambos.
Com isso Dussel pretende criticar a ontologia desde um novo
horizonte meta-fisico, isto é, desde a palavra do outro que se
encontra mais além do horizonte ontológico do mundo do mesmo.
Seis categorias analógicas possibilitariam a elaboração de
uma reflexão crítica sobre toda práxis -- que será sempre uma
relação pessoa-pessoa --, dando conta da necessária abertura à
exterioridade. A categoria de totalidade possibilita a
compreensão do sentido de ser atribuído aos entes desde o projeto
fundamental ao âmbito de um mundo. Na sociedade capitalista a
totalidade do ser se funda no capital. Desde o projeto
fundamental do acúmulo do capital e de garantir o seu domínio -
- com mediações políticas e culturais, entre outras -- desenvolve-
se o "mundo" como totalidade concreta. Inserido nesta
totalidade cada homem, entretanto, pode atribuir vários sentidos
de ser às coisas que aparecem em seu mundo, sendo necessária,
pois, a crítica da compreensão ingênua, cotidiana, a fim de
chegar ao fundamento da totalidade como tal, desvelando o projeto
fundamental desde o qual cada coisa na totalidade recebe o seu
sentido. A categoria de exterioridade possibilita afirmar o outro
radicalmente distinto para além do horizonte da totalidade, do
mundo do mesmo, podendo ser analogicamente outra pessoa, outro
povo, outra cultura, etc. A mediação compreende a possibilidade
dos entes servirem como elementos para a realização de um projeto
fundamental. Têm-se a alienação quando a alteridade é tomada como
mediação para a realização de um projeto -- seja econômico,
erótico, político, pedagógico, etc -- que lhe é imposto, sendo
resultado, portanto, de uma práxis de dominação. Não se trata
mais do não reconhecimento da subjetividade humana exteriorizada
no produto cultural, nem mesmo da não apropriação material pelo
sujeito de sua subjetividade exteriorizada no resultado de seu
trabalho. A libertação consiste em superar praticamente a
alienação, reconstruindo a proximidade. A proximidade, por sua
vez, se efetiva na relação face-a-face na justiça, havendo o
respeito à alteridade, podendo concluir-se ou não na festa e no
gozo, sendo movida por uma pulsão de alteridade. Desde esse jogo
categorial Dussel tratará da práxis em 3 horizontes básicos: a
práxis metafísica, a práxis de dominação e a práxis de
libertação.
A práxis metafísica é mobilizada por uma pulsão de
alteridade que move seres humanos a uma relação face-a-face, na
qual se age para o outro como outro buscando estabelecer a
proximidade, sentido arqueológico e escatológico da existência
humana. Sendo assim, a práxis é distinta da proxemia, que é um
dirigir-se às coisas e da poíesis , que é a ação produtiva.
A práxis de dominação é a afirmação prática da totalidade
na qual o outro, tomado como mediação de um projeto imposto,
ficando alienado. Tal práxis sustenta uma formação social
injusta. A dominação é compreendida como " o ato pelo qual se
coage o outro a participar do sistema que o aliena", obrigando-o
a realizar atos contra a sua essência histórica, sendo para
Dussel, "um ato de pressão e de força" (30). Quando o oprimido
tenta se libertar a dominação transforma-se em repressão --
pedagógica, policial, militar e com inúmeras outras faces. Ao
crescer a pressão da revolução a repressão transforma-se em
guerra.
A práxis de libertação é a ação da alteridade negada que
busca suprimir a dominação que sofre, bem como a ação daquele que
busca suprimir a dominação do outro. Estabelecendo-se uma
consciência ética a partir da palavra interpelante, provocante do
outro, afirma-se uma responsabilidade que se realiza na práxis de
libertação que visa responder a essa palavra promovendo o
questionamento e destruição da ordem totalitária, injusta,
desde a vivência de um ethos libertador fundado na bondade -- que
não busca recompensas pessoais pela ação que desenvolve -- que
busca a construção de uma nova ordem que envolve necessariamente
uma economia e uma tecnologia humanizadas.
Ao deslocar a crítica das ontologias do plano do Desejo ao
plano das analogias, Dussel retorna ao âmbito cognitivo como
horizonte da crítica da totalidade. Ao analisar a dominação como
ato de pressão e força não percebe a dimensão passional das
relações de poder que, modelizando a subjetividade da alteridade
e seduzindo seu desejo , pode agenciar-lhe uma palavra
interpelante que seja alienada. As elites dominantes valendo-se
de diversos mecanismos , como a mídia, por exemplo, podem
mobilizar o povo, normalmente mal-informado, a clamar por ações
que a longo prazo mantenham a sua própria condição de dominado e
explorado. A filosofia da libertação de Dussel que surge
pretendendo-se pós-moderna em razão de negar a ontologia moderna
que afirma a subjetividade do mesmo como horizonte de compreensão
do mundo, posteriomente não se pretende pós-moderna afirmando não
poder negar o lugar determinante da racionalidade (31). Quanto a
isso pode objetar-se que sem a pulsão de alteridade não haveria
o movimento em direção à proximidade em Dussel, condição
indispensável para a práxis metafísica, sem a qual a práxis de
libertação tornar-se-ia impotente para a subversão da ordem
antiga e para a construção do novo (32).
3.3. Guattari e a Revolução Molecular
As reflexões de Félix Guattari tratam da constituição da
subjetividade dos indivíduos em meio à complexa situação
contemporânea vinculada a uma "3ª Revolução Industrial" em
curso, onde a informatização, a telemática, a robótica, a bio-
tecnologia, as modificações na cadeia produtiva, a utilização da
energia nuclear e solar, a tecnologia de materiais e os meios de
comunicação de massa, provocam complexas transformações
econômicas, sociais e culturais que não podem ser mais
compreendidas sobre o paradigma moderno da práxis. Essas
transformações vão configurando uma situação bastante distinta da
modernidade industrial, situação essa que é caracterizada por
vários analistas como pós-industrial ou pós-moderna.
O Capitalismo Mundial Integrado, que vai tomando conta de
todas as áreas do planeta configura-se não apenas pela
integração internacional dos capitais e a constituição de mega-
mercados, mas especialmente pela modelização da subjetividade
dos indivíduos. Para tanto vale-se do saber moderno que, tomando
o homem como objeto de estudo, o esquadrinhou sob recortes da
psicologia, sociologia, antropologia, da pedagogia e das ciências
humanas em geral. Este saber, como instrumento de exercício de
poder, norteia a utilização de novas tecnologias de comunicação
de massa e informatização, bem como a utilização de novos
Equipamentos Coletivos para uma efetiva intervenção sobre o
inconsciente das pessoas agenciando devires, mobilizando desejos,
anseios e outras intensidades segundo um conjunto de códigos
previamente estabelecidos a partir dos quais as performances
individuais se desenrolam em função dos interesses daqueles que
as agenciam. Como afirma Guattari, "os Equipamentos Coletivos, os
meios de comunicação, a publicidade não param de interferir nos
níveis mais íntimos da vida subjetiva" (33). A publicidade, por
exemplo, apoiada em pesquisas de mercado e opinião, em
pesquisas e teorias psicológicas, sociológicas, etc., é um
fenômeno da interação desses conhecimentos com a finalidade de
provocar ações práticas e/ou discursivas. A dominação de massa se
realiza instigando o indivíduo a diferenciar-se da própria massa,
assumindo referências postas pelo próprio sistema vinculadas à
fama, ao poder, ao sucesso, à riqueza, ao status, à segurança,
etc. Tais balizas e anseios vinculam-se às suas opções
profissionais, às suas escolhas de consumo, à competição, à
priorização do privado, à sua postura política, entre outras
ações. Como resultado dos complexos processos de intervenção
sobre a subjetividade têm-se uma modelização de comportamentos na
esfera da produção e do consumo, das relações cotidianas micro-
políticas em todas as esferas, bem como, nas ações políticas a
nível global, estrutural. Sobrecodificam-se as relações de poder
no cotidiano capitalizando tais conjuntos de força difusos em
toda a sociedade para a manutenção do modelo capitalista global.
Tal constituição da subjetividade vai muito além da mera
divulgação de uma formulação ideológica, de uma intervenção no
plano consciente cognitivo da conceituação/representação do
mundo. A modelação da subjetividade é realizada,
fundamentalmente, por uma intervenção sobre o inconsciente que
não deve ser entendido como um espaço de fixação de papéis em uma
redução familialista ou como estruturado similarmente à
linguagem, fazendo depender seus componentes de uma sintaxe
universal. Trata-se, para Guattari de um inconsciente
esquizoanalítico, maquínico, um território aberto por todos os
flancos a interações sociais, econômicas, políticas e de outras
ordens, que agenciam comportamentos através de diversas
semióticas (34). Tal inconsciente, essencialmente, não está
centrado na subjetividade humana, mas participa de diversos
fluxos de signos, fluxos sociais e materiais (35). É um espaço
anterior à oposição realidade-representação-conceituação,
anterior ao plano das teorias e ideologias. E, fundamentalmente,
é o espaço onde se entrelaçam efetivamente os motores da práxis,
o lugar onde interagem componentes semióticos e diversos sistemas
de intensidades, agenciando fluxos de desejo e devires (36). "O
inconsciente... é um nó de interações maquínicas através do qual
somos articulados a todos os sistemas de potência e a todas as
formações de poder que nos cercam" (37).
Com isso, a luta ideológica fica recolocada em novo nível.
Não basta apenas tratar da compreensão teórica do real, mas
especialmente reverter as dinâmicas de agenciamento passional. As
reflexões de Guattari nos levam a concluir que sem a
"desalienação" dos desejos e a reconstrução de uma sensibilidade
ética e política não haverá como derrotar as classes dominantes e
suprimir a dominação de massa.
Frente a esse processo de dominação, Guattari trata da
Revolução Molecular . Nela tem-se a liberação dos fluxos de
desejo fora dos padrões modelizados pelo sistema na cultura de
massas e dos demais padrões opressivos que territorializam a
práxis cotidiana a partir de códigos familiares, religiosos, etc.
Este processo denominado singularização ou subjetivação tem por
horizonte o respeito à alteridade, como formula Lévinas (38). Tal
conceito de revolução descarta o mito progressista da história,
pois a vazão de desejos fora da lógica de produção e consumo do
sistema dominante pode ser neutralizada -- como aconteceu com
movimentos de contra-cultura nos anos 60 e 70 -- ou vir a
constituir padrões mais reacionários -- como se vem verificando
atualmente em países do leste europeu. Elementos de subjetivação
estão presentes em movimentos de mulheres, negros,
homossexuais, rádios livres, ecológicos, juventude, moradia,
saúde e tantos outros que podem se articular em processos de
transformação mais globais, denominados Revolução Molar. Afirma
Guattari que somente a singularização da práxis dos movimentos
sindicais, partidários, das organizações de classe e demais
máquinas de guerra os transformará em movimentos capazes de
abalar as estruturas capitalistas. A dinâmica molecular,
desburocratizando essas entidades e liberando desejos singulares
extrapolando a territorialidade dos códigos disciplinadores e
repressivos, realiza uma singularização da militância, conferindo-
lhe uma nova significação, resgatando na práxis política a
dimensão das utopias pessoais e coletivas.
Não se deve confundir, entretanto, molecular e molar
respectivamente com micro e macro-social. Molecular diz respeito
a processos de subjetivação, singularização, que subvertem
códigos dominantes de individuação -- em nosso caso, de
individuação capitalista --, podendo realizar-se envolvendo
simultaneamente amplos conjuntos de territórios. Molar diz
respeito a ações articuladas que se voltam sobre as "estruturas"
econômicas, políticas e sociais mais objetivas, ainda que podendo
ocorrer em conjuntos de territórios menos amplos. Não se pode,
por outro lado, cindir e contrapor subjetividade e objetividade.
Toda individuação capitalista ou subjetivação subversiva
concorrem para a manutenção ou dissolução do conjunto global de
códigos e performances, em maior ou menor intensidade, nos planos
culturais, econômicos, políticos e sociais. Por outro lado, uma
revolução molar somente ocorre desencadeando processos
moleculares. Trata-se pois, de revolucionar as relações
cotidianas e a cultura, bem como as " estruturas" de produção e
reprodução social subvertendo as relações de poder em ambos os
níveis que se interpenetram.
Em Guattari tem-se uma compreensão mais ampla da
subjetividade, salientando o âmbito inconsciente, passional, da
práxis, em especial, sua dimensão desejante. Uma vez que o
capitalista não apenas se apropria do produto do trabalho, mas
modeliza a subjetividade da massa agenciando desejos em cada
indivíduo, disciplinando-lhes a "liberação" territorializada em
função das performances que lhe interessam, trata-se de resgatar
a liberação de desejos fora do códigos dominantes, promovendo uma
revolução do cotidiano, como elemento imprescindível à subversão
do sistema capitalista. A revolução do Capitalismo Mundial
Integrado exige, contudo, a articulação de revoluções moleculares
com revoluções molares.
3.4. Movimentos Populares atuais e práxis de libertação
Após essa excursão sobre práxis e subjetividade, parece-
nos necessário ampliarmos o conceito de práxis, para
compreendermos satisfatoriamente os jogos de poder atuais. À
dimensão teórica e prática será necessário acrescentarmos a
dimensão das necessidades e paixões bem como o processo dos
agenciamentos. Considerando esses quatro aspectos podemos
compreender mais satisfatoriamente a complexidade da práxis que
desenvolvem os movimentos populares no Brasil atual. Mas que
país é este ?
Marcado por uma pobreza somente comparável na América
Latina à do Peru, o Brasil é um dos países com a maior taxa de
concentração de renda do mundo. Em nosso país 59% dos mais pobres
sobrevive com 2,1% da renda nacional (39); cerca de 40 a 60% das
terras nas capitais dos estados são manchas urbanas destinadas à
especulação imobiliária (40); o adensamento urbano faz com que as
doze maiores cidades do Brasil detenham hoje cerca de 30% de toda
a população do país(41); enquanto no Recife mais de 40% da
população mora em favelas. Alguns grupos econômicos e
proprietários privados detém, sozinhos, latifúndios maiores que
vários países, como a MANASA que detinha já em 86 mais terras que
todo o território da Bélgica e do Líbano somados, ou a APLUB, que
possuía um território maior que o estado de Israel ou de El
Salvador (42); 7 milhões de crianças estão hoje pelas ruas
pedindo esmolas; 320 mil crianças morrem de fome/miséria por ano;
mais de 8 mil casos atuais comprovados pela Organização
Internacional do Trabalho de " cativeiro por dívida", isto é, de
trabalho escravo em nosso país (43). Por outro lado, nesses anos
de crise a elite enriqueceu cada vez mais; o setor financeiro
teve lucros elevados (44); e nossa mídia eletrônica --
tecnicamente qualificada e extremamente criativa -- exporta
novelas, programas infantis e outros produtos culturais para o
Primeiro Mundo. A classe dominante vive em uma opulência de
envergonhar turistas europeus.
Neste país que alguém já chamou de "Belsomália", mistura de
Bélgica com Somália, ocorre uma conformação de elementos
econômicos, políticos, sociais e culturais a-modernos, modernos e
pós-modernos. A-modernos são a estrutura fundiária, o coronelismo
político, o trabalho escravo, o voto de cabresto, a religiosidade
tradicional alienante, etc. Modernas são as indústrias, os
mecanismos democrático-formais, a capitalização do mercado urbano
de terras, o movimento de concentração de capitais, a depredação
ambiental em razão do lucro, o trabalho assalariado e sua
especialização, os cientificismos, o mito do progresso, os
sindicatos e associações de classe, movimentos sociais que atuam
na área da reprodução social da vida, etc. Pós-modernas são a
informatização, a telemática, os caixas-automáticos e vídeo-
textos, a mídia, a robotização de algumas etapas produtivas, a
eliminação de postos de trabalho no setor secundário e a
ampliação do setor terciário, a manipulação da subjetividade das
pessoas pela publicidade através da mídia eletrônica, o consumo
simbólico, a existência de gangs, movimentos culturais,
ecológicos, etc. É considerando este quadro complexo que
buscaremos refletir sobre a constituição da subjetividade das
pessoas e sobre a práxis de libertação dos movimentos sociais.
A subjetividade de cada ser humano é constituída numa trama
de relações micro e macro-políticas -- portanto, relações de
poder -- em que interagem as condições materiais para a
reprodução social de sua vida, os horizontes e códigos culturais
que orientam a compreensão de sua circunstância e condição
social, bem como a sua interação com os demais e sua intervenção
sobre a realidade efetiva. É correto afirmar que cada ser
humano -- independentemente da condição social -- possui sua
utopia, construida a partir da negação de sua realidade,
formulada a partir de anseios, desejos, aspirações e
necessidades, que variam significativamente conforme as classes
sociais. Em uma sociedade de classes, as utopias individuais
acabam sendo modelizadas sob as dinâmicas do capitalismo. O
capitalismo é o principal responsável pela topia deplorável em
que vive a grande maioria da população, com as necessidades
básicas para a reprodução satisfatória de sua vida insatisfeitas,
bem como, pela opulência de uma elite poderosa. Por outro lado,
ele é também o grande vendedor de ilusões e fantasias, promovendo
a formulação de utopias alienadas para todas as camadas sociais
e apresentando estratégias para conquistá-las.
Detenhamo-nos aqui, entretanto, na utopia das populações
pobres e da classe média-baixa que são a base dos movimentos
populares. Em geral propõem-se que ninguém deva se conformar com
a pobreza, mas lutar para melhorar a sua condição social, que
será avaliada pelo grau de riqueza que atingir, isso é, pela
propriedade de certos tipos de imóveis, automóveis, volumes de
recursos em aplicações financeiras, bens duráveis, indumentária,
adornos caros, prodigalidade em gastos com supérfluos, em
aquisição de produtos de determinadas marcas, em viagens e
festas, etc. É a partir dessa territorialidade que a
subjetividade mobilizada por necessidades naturais, culturais e
desejos agenciados através de diversas semióticas formula sua
utopia, que é a idealização dos contornos de sua própria
individuação. Além da utopia, apresenta-se também a estratégia
para efetivá-la: votar no "bom político" que tem "dó do povo";
qualificar-se profissionalmente, trabalhar bastante, desenvolver
atividades extras remuneradas, poupar e acumular um capital
inicial para tocar seu próprio negócio arriscando para vencer,
jogar na loteria e muitas outras alternativas, mas sempre
respeitando o direito de propriedade, a lei, a ordem, etc.
É importante frisar que tais utopias não são representação
da realidade futura, mas uma composição de uma formulação
cognitiva, imaginária, com anseios, desejos, aspirações que
mobilizam a práxis em busca de objetivos últimos. Embora emerjam
negando a realidade imediata, as utopias tanto podem ser
conservadoras, alienantes, quanto singularizadoras e
revolucionárias.
As utopias alienantes não afirmam o desejo alterativo, a
busca de justiça, a proximidade como desejo fundamental. Acabam
favorecendo a classe dominante, ou construindo relações
opressivas em que se nega à alteridade o seu devir histórico.
Elas provocam, por exemplo, o desvio do desejo da relação pessoa-
pessoa para o desejo da apropriação de objetos, como ocorrem em
tantas peças de publicidade: o desejo da companhia de uma linda
mulher desviado para a compra de uma calça jeans; o desejo de
uma família feliz desviada para o consumo da margarina; o desejo
de um homem carinhoso que ofereça flores ou de um rapaz erótica e
vigorosamente atlético, desviado para o consumo de desodorantes,
etc. Por outro lado, as utopias singularizantes afirmam o desejo
alterativo, a busca da justiça e a proximidade como seu
fundamento. Agenciam processos de subversão de códigos éticos,
políticos, econômicos, jurídicos, comunicativos, que impeçam os
processos de subjetivação, singularização, o devir histórico
autêntico de pessoas e grupos.
Quando grupos de pessoas se reúnem para tentar realizar
conjuntamente questões comuns às suas utopias pessoais, emergem
os movimentos sociais. É irrefutável que todo movimento popular
possui uma pauta de objetivos que, sendo a negação de aspectos
da realidade presente, da topia estruturada, exigindo sua
transformação, pode ser caracterizada como expressão de pequenas
utopias fragmentadas e isoladas que podem ou não serem
singularizadoras. É importante salientar a possibilidade de se
construir utopias mais coletivas compondo essas utopias
fragmentadas em torno de eixos de luta visando transformações
estruturais da sociedade (45).
A análise das utopias que mobilizam pessoas, grupos e
coletividades maiores em movimentos sociais é imprescindível para
a compreensão dos desdobramentos e das tendências históricas
desses movimentos. Tomemos como exemplo uma ocupação de terras.
Depois de muitas lutas e organizações, enfrentamentos com
policiais, audiências com o prefeito, negociações com o
proprietário da área ocupada, uma associação de moradores
conquista a posse da terra. Na teorização da prática compreendem
que os interesses dos sem-teto são antogônicos aos interesses dos
especuladores imobiliários, que as leis e a polícia estavam a
serviço de defesa da propriedade privada da terra e não da sua
ocupação social. Contudo, após a conquista da terra, muitos
deixam de participar da associação de moradores, pois desejam
realizar outros objetivos pessoais para os quais a associação não
serve como mediação. Assim, as utopias pessoais daqueles
indivíduos compunham não apenas a necessidade da moradia, mas
também o desejo de possuir um vídeo-cassete, um automóvel, uma
determinada marca de roupa, e outros elementos mais, desejos
esses agenciados pela mídia. Nesse caso, tais desejos são
alienantes por dois motivos. Primeiramente porque o sentido
desses objetos não se constrói a partir de um projeto fundamental
mobilizado a partir do desejo alterativo, não sendo portanto
buscados como mediação para a proximidade, mas sim em vista de
um projeto de individuação em que a posse do objeto simbólico
lhe confere, consoante ao imaginário construido sob a
territorialidade da utopia dominante, um destaque social e certo
poder ao qual o objeto está associado. Se esses mesmos objetos
fossem buscados como mediação para a proximidade na abertura de
uma utopia coletiva, não haveria aí alienação, e a estratégia
para alcançá-los não seria individualista, mas mediatamente
coletiva, pois tratar-se-ia de buscar o melhor para toda a
coletividade e não apenas para si próprio. Por outro lado é
também alienada porque além do objeto não realizar o desejo
último de subjetivação na proximidade, realização do qual se
afasta ao buscar atingir por essa via, acaba praticamente
realizando o acúmulo de capital daqueles que manipulam o seu
desejo e que comercializam o objeto simbólico.
No processo de aprimoramento da práxis de libertação dos
movimentos sociais -- considerando seus agenciamentos, as
necessidades e os aspectos passionais envolvidos, a dimensão
teórica e prática -- parece ser importante atuar considerando
seis aspectos: a) partir da prática efetiva do movimento ou ator,
mapeando seus agenciamentos fundamentais; b) colocar em crise as
utopias pessoais (indivíduo-sujeito) e particulares (grupos e
movimentos), elaborando uma cartografia dos aspectos passionais,
necessidades e interesses envolvidos, bem como suas formulações,
estratégias de construção teórica e/ou imaginária da realidade e
seus processos, bem como estratégias e táticas de intervenção
sobre a topia, c) analisar as estruturas e conjunturas do
sistema que consolidam e tensionam a topia efetiva e as utopias
que lhe dão sustentação; d) em seguida é mister tratar-se da
construção, a partir das diversas utopias pessoais e
particulares, de utopias mais coletivas movidas pelo desejo
alterativo, que abarque as aspirações populares imediatas
articuladas em eixos estratégicos que avancem em sua satisfação
incidindo sobre as estruturas sociais apontando para o fim da
exploração, dominação e discriminação, consolidando uma nova
ética, que se manifeste em todas as relações micro-políticas do
cotidiano; e) cuidar para que tal utopia coletiva, ações práticas
e linguagens mediadoras sejam sedutoras, mobilizando os desejos
das pessoas, promovendo o agenciamento de processos de
subjetivação, singularização e f) por fim, tratar de como
efetivar a intervenção de grupos, organizações e movimentos em
organizações mais globais que possibilitem uma ação articulada,
norteada por uma ampla utopia coletiva, explicitada objetivamente
em um projeto político, que evidenciando os eixos de luta,
consolide um amplo engajamento social em sua defesa.
3.5. Conclusões.
Respondendo parcialmente aos questionamentos iniciais,
podemos afirmar que é necessário superarmos a concepção moderna
da práxis para compreendermos adequadamente as diversas facetas
da práxis de dominação e implementarmos efetivamente uma práxis
libertadora. Tais mudanças vinculam-se a uma nova concepção de
subjetividade, alienação e das dinâmicas de poder do mundo
contemporâneo, sob a configuração de um capitalismo mundial
integrado, no qual estamos inseridos.
O transporte para a práxis política do paradigma militar
não só importou uma territorialidade de individuação militante,
sublimadora do eros em práticas discursivas e não-discursivas
frente aos adversários no interior dos partidos de esquerda e dos
inimigos de classe, como também dificultou a compreensão dos
jogos de sedução, a construção do imaginário, o agenciamento de
fantasias como mediações de ação política. Despreparados para
trabalhar seus próprios sentimentos, anseios, desejos, medos e
fantasias, muitos militantes acabam sendo seduzidos pelas classes
dominantes e cooptados por governos e patrões que lhes acenam com
a realização parcial de suas utopias pessoais; outros que
investem sua libido em campanhas eleitorais nas quais perdem os
contornos que separam a realidade de sua fantasia, abandonam as
organizações após a derrota eleitoral de seus sonhos; outros que
se projetam como lideranças de destaque passam a capitalizar seu
poder de persuasão face ao prazer do reconhecimento coletivo, de
ser ouvido, ser citado, ser estimado e seguido; outros
burocratizam as entidades criando uma couraça que os proteja no
seio da instituição; outros ainda, após serem eleitos
parlamentares, colocam em segundo plano a realização da utopia,
dos princípios e da estratégia partidárias, cuidando
prioritariamente da realização de sua utopia pessoal, da sua
reeleição, mesmo às custas da cooptação de novimentos sociais.
Enfim, sempre haverá consideráveis razões para justificar uma
ação movida por um desejo inconfessado, bem como haverá razões
suficientes para cada cidadão justificar suas opções normalmente
agenciadas em jogos de poder.
Os alargamentos contemporâneos no trato da alteridade e
subjetividade analisados neste artigo, abrem novos
questionamentos no campo da práxis política. Entendemos, contudo,
que nenhuma das concepções colocadas em debate conseguiu
aprofundar satisfatoriamente algumas questões essenciais.
Como promover a construção de utopias coletivas capazes de
articular diversas utopias particulares de inúmeros novos atores
sociais-populares que emergiram ou ressurgiram no mundo todo a
partir da década de 60 e que proliferaram e se diversificaram
sobre questões específicas como movimentos feministas, movimentos
de negros, movimentos de juventude, movimentos ecológicos, e
especificamente no Terceiro Mundo, movimento por terra para morar
e plantar, movimento de saúde, movimento de transporte, ,
movimento de índios desaldeados, movimento de meninos e meninas
de rua, associações de moradores, comunidades eclesiais de base,
movimentos de luta contra o desemprego, movimento de favelados,
movimentos estudantis e tantos outros ? Como compor a diversidade
em um mesmo processo global que resulte em uma sociedade
radicalmente democrática, popular e plenamente socialista ?
Como provocar processos de subjetivação que consigam
reverter os agenciamentos efetivados através da mídia, e a
submissão passiva das pessoas, em se deixarem super-explorar, em
troca de um mísero provento que não dá para satisfazer nem sequer
suas necessidades primárias, mas que os mantém vivos ?
A classe dominante que encontra agora nas democracias
formais um espaço de relativa segurança, não intensificaria ações
militares que esporadicamente já realizam matando lideranças
populares todos os anos, aumentando a tensão dos conflitos de
baixa intensidade para se manter no poder, caso seus interesses
sejam colocados em risco ? Como compor sob uma ética de
libertação e uma estratégia eficiente jogos de poder que resistam
a tal processo envolvendo seduções, persuasões, agressões e
mortes ?
Como promover a singularização da práxis de lideranças e
dirigentes cuja subjetividade foi territorializada sob os códigos
disciplinadores de tendências de esquerda que mantiveram
intocados o machismo e o autoritarismo camuflados sob certas
estratégias de organização sindical e partidária ?
Como resgatar a paixão política de setores expressivos e
atuantes nos movimentos políticos e sociais que se tornaram
apáticos após a queda do socialismo real no leste europeu, após
a constatação do insucesso da Frente Sandinista na construção do
socialismo democrático em Nicarágua que se tornou patente na
derrota eleitoral para Violeta Chamorro, após a derrota da utopia
socialista da Frente Brasil Popular em 1989 ?
Essas e muitas outras questões que emergem da práxis de
pessoas, movimentos e partidos engajados na construção de uma
nova sociedade nos convidam a uma reflexão orgânica que contribua
para a libertação integral de cada ser humano, para a subversão
de todas as situações de exploração, dominação e de qualquer
forma de injustiça, bem como para a construção de uma sociedade
em que cada ser humano possa viver plenamente sua existência,
sendo respeitado e desejado em sua alteridade. A disposição
última a atender a esse convite, entretanto, não se apoia em um
paradigma teórico, mas em uma sensibilidade ética e estética
perante o rosto de cada ser humano oprimido que, mesmo sem
palavras, nos convida à solidariedade.
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NOTAS
* Comunicação apresentada na "Semana Filosófica" , PUC-PR, 24 de
Setembro de 1992
1. Hegel,F.G.W La Phénoménologie de l'Esprit. Trad. Jean
Hyppolite. Paris, Aubier, Éditions Montaigne, 1939 Tomo I p.
153
2. Adolfo Sánchez Vázquez, Filosofia de la Praxis, Ed. Grijalbo,
México D.F., 1967, p. 66 - 67
3. Hegel,F.G.W op. cit. p. 159
4. Karl Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Coleção Os
Pensadores, vol. 35 Editora Abril, 1974 p. 27
5. Ibid., p. 16
6. Karl Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel :
Introdução, apud Adolfo Sánchez Vázquez, Filosofia de la
Praxis, Ed. Grijalbo, México D.F., 1967, p. 108
7. Karl Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Coleção Os
Pensadores, vol. 35 Editora Abril, 1974 p. 22
8. Ibid., p. 23
9. Ibid., p. 23
10. Tanto a atividade em que se objetiva a subjetividade humana,
quanto o gozo que pode se realizar na apropriação do objeto,
são sociais em seu modo de existência e conteúdo. Da mesma
forma que na prostituição o corpo de outro é mediação de uma
relação social alienante, sob a contradição prostituidor-
prostituido, também a relação alienada com o objeto em busca
do gozo é uma prostituição. "A prostituição é apenas uma
expressão particular da prostituição geral do trabalhador, e,
desde que a prostituição é uma relação que inclui não somente
o prostituído, mas também o prostituinte -- cuja infâmia é
ainda maior --, recai também o capitalista, etc, nesta
categoria." (Ibid., p. 15). Em outra passagem, contudo, Marx
afirma que "... o dinheiro é o proxeneta entre a necessidade e
o objeto, entre a vida e os meios do homem". E salienta: "Mas
o que me serve de meio para minha vida, serve também de meio
para o modo de existência dos outros homens para mim. Isto é
para mim o outro homem" (Ibid., p. 35). Neste caso, em um
modo de existência onde a humanidade é negada em função do
acúmulo de capital, a subjetividade que se realiza no produto
objetivo -- que visa atrair o ser do outro -- e na sua fruição
-- mediada pelo dinheiro -- se desumaniza.
11.Karl Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Coleção Os
Pensadores, vol. Editora Abril, 1974 p. 23
12. Ibid., p. 17
13. Ibid., p. 22 (grifo nosso)
14. Ibid., p. 17
15.Ibid., p. 34. Para Marx a superação da alienação está
vinculada às suas diversas formas históricas: " É evidente que
a superação da alienação se dá sempre a partir da forma da
alienação que constitui a potência dominante: na Alemanha, a
autoconsciência; na França, a igualdade, por causa da
política; na Inglaterra, a necessidade prática, material,
real, que se toma por única medida." ( Ibid., p. 27).
16. Escreve Clausewitz em Da Guerra "A guerra é uma simples
continuação da política por outros meios. Vemos assim, que a
guerra não é meramente um ato político, mas um verdadeiro
instrumento político, uma continuação das relações políticas,
a realização destas por outros meios. [...] Toda guerra será
considerada como um ato político". Cf. Carl Von Clausewitz, De
la Guerre Traduzido ao francês por Denise Naville. Les Edition
de Minuit, Paris, 1970, p. 67 - 68. Delcy Doubrawa ao invés de
"relações políticas" preferiu a tradução "negociações
políticas" . Cf. Rogers Ashley Leonard, Clausewitz, Trechos de
sua Obra, traduzido por Delcy Doubrawa, Biblioteca do Exército
Editora, Rio de Janeiro, 1988 p. 46
17.No primeiro número do Pravda em 1923 Lênin escreve que "para
os trabalhadores do partido só pode ser benéfico o estudo
detalhado das obras de Clausewitz". Cf: Augusto de
Franco,"Recusando o paralelo militar na política" in O novo
socialismo utópico (pré-edição) São Paulo, Ed. Thomé das
Letras, 1991, p. 47. Sobre esse tema: Clemente Ancona. 'La
influencia de 'De La Guerra' de Clausewitz en el pensamiento
marxista de Marx e Lenin" in "Clausewitz en el pensamiento
marxista", Pasado y Presente, México, 1979.
18.Adolfo Sánchez Vázquez, Filosofia de la Praxis, Ed. Grijalbo,
México D.F., 1967, p. 165
19. Embora Sanchez Vázquez não exponha, em Filosofia de la
Praxis, de maneira concisa e clara este movimento metodológico
dialético de compreensão da realidade, a ele se refere citando
a Crítica da Economia Política explicitando a atividade
teórica cognoscitiva, a produção de conhecimentos, "... como
um processo ascencional do abstrato ao concreto...", bem como,
tratando da sua dimensão analítica e sintética, em outra
passagem, ao referir-se a Hegel ( p. 167 e 72-73). O conteúdo
do parágrafo de nosso artigo que dá margem a essa nota parece
implícito e coerente com o estudo da práxis feita por Vázquez.
Estudos acerca do método dialético marxiano desdobrando-o em
momentos analíticos e sintéticos, resolutivos e compositivos,
com posicionamentos distintos perante o mesmo, podem ser
encontrados em G. A. Kursanov, El Materialismo Dialético y el
Concepto, Ed. Grijalbo, México D.F., 1966, em especial o ítem
"El Concepto como Unidad de lo Concreto y lo Abstracto" p. 195-
208 ( publicada no México no mesmo ano em que Vázquez defende
a sua tese de doutorado sobre a filosofia da práxis ),
Wolfgang Röd, Filosofia Dialética Moderna, Brasília, Editora
da Universidade de Brasília, 1984, em especial o ítem "O
Método da Economia Política" p. 230-235, e ainda Enrique
Dussel, La Producción Teórica de Marx -- un comentário a los
grundrisse Ed. Siglo Veintiuno, México D.F., 1985, em especial
"El Método Dialéctico de lo Abstracto a lo Concreto" p. 48-63.
20. Salienta Vázquez que ao se realizar a análise de uma dada
formação estrutural, em um momento histórico determinado, é
necessário considerar a perspectiva genética de constituição
histórica das próprias estruturas em questão. Cf. Sánchez
Vázquez, op. cit. p. 282-283.
21. Tal conceito de práxis política é similar ao conceito de
guerra em Clausewitz: " a guera é pois um ato de violência
destinado a compelir o adversário a submeter-se à nossa
vontade" . Clausewitz, op. cit. p. 51. Lênin afirmou em seu
texto sobre "O Racha da II Internacional" que a violência é o
meio que precisamente distingue a guerra como continuação da
política. Cf. Pierre Naville, Carl Von Clausewitz et la
théorie de la guerre in Clausewitz, op. cit. p. 29
22. A violência "calada" da exploração de classe, da miséria, da
fome, da prostituição e da doença citada por Vázquez op.cit.
p. 305-306 nos lembra a guerra civil "oculta" de Lênin. Ao
par da violência calada está a violência "ruidosa" do Estado
com seus aparelhos e métodos repressivos na defesa dos
interesses do capital.
23. Ao tratar da fenomenologia do eros, Lévinas explicita que na
relação erótica humana manifestam-se simultaneamente o desejo,
que se conclui no gozo, e o Desejo sempre insatisfeito, que
buscará servir ao outro na proximidade, na justiça e no
respeito. Cf. Emmanuel Lévinas, " Au dela du visage" in
Totalité et Infini, Martinus Nijhoff , 1961 pp. 232 -261, em
especial 233 - 244.
24. Durante a década de 70, trata-se da dialética existencial
heideggeriana, com incursões pelo conceito de práxis formulado
por Husserl desde a Lebenswelt. A partir da década de 80,
Dussel volta-se ao estudo da dialética marxiana buscando nos
próprios textos de Marx a utilização da categoria de
exterioridade. O conceito de mediação em Dussel, entretanto,
não é similar ao conceito de mediação em Marx, pois Dussel
não concebe similarmente a contradição dialética ontológica da
realidade, posta a precedência metafísica do outro distinto
como negadora da posição ontológica do outro como diferente.
25.Ao afirmar que o outro enquanto tal não pode ser visto,
Lévinas cria um problema quanto ao estatuto alterativo do
corpo material do outro. Retomando o conceito hebraico de
basar (carne, homem), Dussel afirma a unidade do corpo,
simultaneamente matéria e vida, objetividade e subjetividade
interpenetradas, sendo portanto a exterioridade humana
simultaneamente seu corpo objetivo e sua subjetividade. Esta
equação dusseliana cria, entretanto, um outro problema. Não se
poderá advogar, por exemplo, que um grupo de empobrecidos e
oprimidos seja exterioridade total a concretude histórica de
uma dada formação social, da qual materialmente participam na
reprodução social de suas vidas, ainda que em condições
precárias, mesmo contra sua vontade, mas em razão de suas
necessidades. Nesse sentido as ponderações de Oswaldo Ardiles
parecem corretas ao afirmar que a exterioridade é também
simultaneamente e parcialmente interna à totalidade. Cf.
Oswaldo Ardiles. El Exílio de la Razón Ed. Sils Maria,
Cordoba, Argentina, 1988 pp 162 a 164 e 172.
26.A analogia e a meta-física são duas categorias inseparáveis no
pensamento dusseliano. A metafísica é afirmada no seguinte
sentido: "... a physis significa a totalidade ou o fundamento
no sentido dos gregos e metà significa o que está 'mais
além'". A metafísica trata assim de "... descobrir um mais-
além do mundo, que é dado quando o Outro provoca e... sua
palavra vem de 'mais além' do horizonte do mundo. Em grego,
'mais além' e 'mais alto' se dizem aná e a 'palavra': lógos;
de tal maneira que ana-lógos significa ' a palavra que irrompe
no mundo desde mais além do mundo', mais além do fundamento."
Cf. Enrique Dussel, Introduccion a una filosofia de la
liberación latino-americana p. 126
27.Enrique Dussel, Introduccion a una filosofia de la liberación
latino-americana, Ed. Extemporaneos, México D.F., 1977
28.Enrique Dussel, Método para una filosofía de la liberación -
Superación Analéctica de la Dialéctica Hegeliana. Ediciones
Sigueme, Salamanca, 1974.
29.Enrique Dussel, Filosofia da Libertação, Loyola, 1980
30.Ibid., p. 60
31.Enrique Dussel, Filosofia de la liberación desde la praxis de
los oprimidos in Libertação Liberación 2(1):33-49 jan dez 91
32.Sobre a identidade entre os conceitos de "Pulsão de
Alteridade" em Dussel e "Desejo do Invisível" em Lévinas, veja-
se nosso artigo "Lévinas e Dussel face-a-face" in Atualidade
3(116):7, 23 out 29 out 88, Curitiba, Pr.
33.Félix Guattari, Revolução Molecular, Ed. Brasiliense, São
Paulo, 1987, p. 170 - 171
34.Guattari, analisando a produção econômica e a produção da
subjetividade no sistema capitalista, percebe a ocorrência de
uma semiotização das relações de poder em ambos os níveis, que
são interativos. Os sistemas de signos que regem diversos
domínios da vida ficam modelizados sob os códigos do
Capitalismo Mundial Integrado. O capital, afirma Guattari, " é
muito mais que uma simples categoria econômica relativa à
circulação de bens e à acumulação dos meios econômicos. É
antes uma categoria semiótica que se refere ao conjunto dos
níveis da produção e ao conjunto dos níveis de estratificação
dos poderes". "O exercício do poder por meio das semióticas do
capital tem como particularidade proceder concorrentemente, a
partir de um controle de cúpula dos segmentos sociais, e pela
sujeição de todos os instantes de cada indivíduo.(...) A
sobrecodificação, pelo capital, das atividades, dos
pensamentos, dos sentimentos humanos, acarreta a equivalência
e a ressonância de todos os modos particularizados de
subjetivação.(...) O conjunto de valores de desejo é
reorganizado numa economia fundada na dependência sistemática
dos valores de uso em relação aos valores de troca, ao ponto
de fazer com que esta categoria de valores de uso perca seu
sentido. Passear 'liveremente' numa rua, ou no campo, respirar
ar puro, cantar meio alto, tornam-se atividades quantificáveis
de um ponto de vista capitalístico. (...) A ordem capitalista
pretende impor aos indivíduos que vivam unicamente num sistema
de troca, uma truduzibilidade geral de todos os valores para
além dos quais tudo é feito, de modo que o menor de seus
desejos seja sentido como associal, perigoso, culpado." Sob os
códigos do capital territorializa-se a ética, a política, a
economia, etc; modeliza-se a relação dos sujeitos entre si e
com os objetos, produzindo-se-lhes significações, sentidos e
códigos de interação. Cf. F. Guattari, op. cit. p. 213, 201 -
202.
35.Salienta Guattari que contemporaneamente "os antigos
territórios do Ego, da família, da profissão... etc, desfazem-
se, uns após outros -- se desterritorializam." E conclui: " é
porque o inconsciente moderno é constantemente manipulado
pelos meios de comunicação, pelos Equipamentos Coletivos,
pelos especialistas de todo tipo, que não podemos mais nos
contentar hoje em defini-lo simplesmente em termos de entidade
intra-psíquica, como fazia Freud..." Félix Guattari, op. cit.
p. 167
36.Em Guattari o devir é um " termo relativo à economia do
desejo". Para o pensador francês " os fluxos de desejo
procedem por afetos e devires, independentemente do fato de
que possam ser ou não calcados sobre pessoas, sobre imagens,
sobre identificações. Assim um indivíduo, etiquetado
antropologicamente como masculino, pode ser atravessado por
devires múltiplos e, aparentemente contraditórios: devir
feminino que coexiste com um devir criança, um devir animal,
um devir invisível, etc. Uma língua dominante... pode ser
localmente capturada num devir minoritário", como um certo
dialético. Cf. Félix Guattari, "Notas descartáveis sobre
alguns conceitos" in Félix Guattari & Suely Rolnik,
Micropolítica -- Cartografias do Desejo, Petrópolis, Ed.
Vozes, 1986, p. 318
37.Félix Guattari, Revolução Molecular, Ed. Brasiliense, São
Paulo, 1987, p. 171
38.Falando de uma prática democrática da diferença afirma
Guattari : " Não se trata de aceitar o outro em sua diferença
e sim de desejar o outro em sua diferença, como escreve
Emmanuel Levinas" Cf. Félix Guattari, "Subjetivação
Subversiva" in Teoria e Debate, (12):60-64 nov 1990 p. 64
39.Conforme afirma Clóvis Rossi em uma análise sobre o estudo
"Pobreza e distribuição de Renda na América Latina" feito por
economistas do Banco mundial: "... o número de miseráveis só
faz crescer. Eram 46,3% em 1980 e já são os 59,6% de agora.
Como se fosse pouco há o detalhe de que esses quase 60% ficam
com miserabilíssimos 2,1% da renda nacional. Cabe, portanto,
aos 40% restantes o grosso do bolo (pouco menos de 98%)".
Clóvis Rossi, "A Grande Infâmia". Folha de São Paulo,
09/03/93, p.2 . Embora estes dados pareçam contraditórios com
a análise de Carlos Eduardo da Silva, no mesmo jornal no dia
anterior afirmando que " embora haja mais pobres no país,
diminuiu a participação deles na apropriação da renda
nacional: em 1980, os 20% mais pobres tinham 2.6% da riqueza
do país; em 1989, tinham só 2.1 % ", o fato é que a miséria
aumentou inegavelmente. 44% dos pobres do continente latino-
americano vive em nosso território, embora tenhamos apenas um
terço da população da região. Conforme dados do IPEA,
aproximadamente 22% da população do Brasil (31.679.095
pessoas) passam fome, vivendo atualmente em condições de
miséria extrema.
40.Cf. José William Vesentini, "Espaços Ociosos e Especulação
Imobiliária", in José W. Vesentini e Fernando Portela. Êxodo
Rural e Urbanização. Coleção Viagem Pela Geografia, 3ª Edição,
São Paulo, Editora 'Àtica, 1991, p. 22.
41.Trata-se das regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de
Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador,
Fortaleza, Curitiba, Brasília, Belém, Campinas e Goiania. Cf.
José William Vesentini , "Síntese Geográfica - Compreendendo o
Homem e o Espaço" in José W. Vesentini e Fernando Portela.op.
cit., p. 29. Destaque-se que a única megalópole brasileira que
se estende da Grande São Paulo ao Grande Rio, incluindo
Campinas, a Baixada Santista e o vale do Paraíba, possui uma
área de 46 mil Km², aproximadamente 0,5% do território
nacional, abrigando 23% da população do país e mais de 60% da
produção industrial brasileira. Cf. José William Vesentini.
Sociedade e Espaço. Editora 'Àtica, 1992. p. 177.
42.Conforme documento da CNBB-Regional Sul II, Semana Social
Paranaense - Brasil, Alternativas e Protagonistas, Curitiba,
1993 , p. 2 : " em todo o país existem apenas 5 milhões de
proprietários rurais. Os 20 maiores proprietários são donos de
mais de 20 milhões de hectares e os 3 milhões e 300 mil
pequenos proprietários têm, todos juntos, menos de 20 milhões
de hectares. Fazendo a média de um milhão de hectares para
cada grande proprietário e 6,6 hectares para cada pequeno" .
No Brasil existem atualmente 4,8 milhões de famílias rurais
sem terra. Confrontando-se outras fontes tem-se que a MANASA,
Madeireira Nacional SA, possuía 41.317,66 km² a sua maioria em
Lábrea, Maranhão e Gurapuava, Piauí; já a APLUB -- Agro
Florestal Amazônia SA possuía 21.984,72 Km² basicamente em
Carauari e Jataí no Amazonas. A Bélgica possui 30.519 Km²,
Líbano: 10.552 Km², Israel 21.946 Km², El Salvador 21.393 Km².
Fontes: Jornal do MST e Almanaque Abril, 1986
43.Cf. Folha de São Paulo, 09-03-93, p. 1-9. Segundo a CPT
nacional esse número chega a mais de 16.000. Cf. Comissão
Pastoral da Terra. Conflitos no Campo no Brasil. Goiânia.
CPT/Loyola, 1993, p. 78
44.Os 100 maiores bancos no país em 1992 obtiveram 9,8% de
rentabilidade sobre o patrimônio líquido, 13% de crescimento
do lucro operacional e somente o Bradesco obteve sozinho um
lucro de US$ 300 milhões. Cf. Revista Veja, Nº 32, 11 de
Agosto de 1993, p.76-83
45.Sobre eixos de lutas veja-se nosso artigo "Eixos de Luta e a
Central de Movimentos Populares" in Revista de Cultura Vozes,
Petrópolis, 85(6):645-671 nov dez 91