terça-feira, 9 de março de 2010

POSIÇÕES SOBRE O FEMINISMO, A GUERRA DE GÊNERO, O RECALQUE DO FEMININO E DESAFIOS À TRANSIÇÃO DE MODELO NA RELAÇÃO ENTRE OS GÊNEROS



"No flagrante, a indolente negra Anastácia, que não entendia a importância do estupro consensual para a miscigenação da civilização brasileira" - Imperdivel no  blog do Leandro Fortes


Abaixo, repúdio às declarações do senador Demóstenes Torres (DEM) sobre cotas para negros nas universidades, revelando seu profundo machismo racista.




 Recebi esta carta de repúdio para que se divulgue:


Carta de Repúdio
 
Nós, Conselheiras e Conselheiros do Conselho Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - CNPIR vimos através desta, repudiar a opinião expressada pelo excelentíssimo senador da república sr. Demóstenes Torres, Presidente da Comissão de Constituição Justiça e Cidadania do Senado Federal, no seu pronunciamento durante a Audiência Pública no Supremo Tribunal Federal do Brasil (STF),  no dia 03 de Março de 2010, que analisava o recurso instituído pelo Partido Democratas contra as Cotas para Negros na Universidade de Brasília.
 
Na oportunidade o mesmo afirmou que: as mulheres negras não foram vítimas dos abusos sexuais, dos estupros cometidos pelos Senhores de Escravos e, que houve sim consentimento por parte destas mulheres. Na sua opinião: Tudo era consensual!. O excelentíssimo senador da república Demóstenes Torres, continua sua fala descartando a possibilidade da violência física e sexual vivida por negras africanas neste período supracitado. Relembra-nos a frase: Estupra, mas não mata!!!.
 
O excelentíssimo senador Demóstenes aprofunda mais ainda seu discurso machista e racista, quando afirma que as mulheres negras usam de um discurso vitimizado ao afirmarem  que são as  vítimas diretas dos maus tratos e discriminações no que se refere ao atendimento destas na saúde pública. Que as pesquisas apresentadas para justificar a necessidade de políticas públicas específicas, são duvidosas e que nem sempre são  confiáveis, pois podem ser burladas e conter números falsos.
Enquanto o estado brasileiro reconhece a situação de violência física e sexual sofrida pelas mulheres brasileiras, criando mecanismos de proteção como a Lei Maria da Penha, quando neste ano comemoramos 100 anos do Dia Internacional da Mulher, o excelentíssimo senador, vem na contramão da história e dos fatos expressando o mais refinado preconceito, machismo e racismo incrustado na sociedade brasileira.
Por isso, vimos através desta carta ao Povo Brasileiro repudiar a atitude do excelentíssimo senador Demóstenes Torres. 
 
Ao tempo em que resgatamos a dignidade das mulheres negras e indígenas, que durante a formação desta grande nação, foram SIM abusadas, foram SIM estupradas, foram SIM torturadas, foram SIM violentadas em seu físico e sua dignidade. Aos filhos dos seus algozes, o leite do seu peito, aos seus filhos, o chicote. Não nos curvaremos ao discurso machista e racista do Senador!  É inaceitável, que o pensamento dos Senhores de Engenho se expresse em atitudes no Parlamento Brasileiro.
 
Brasília, 05 de Março de 2010.




 Publicado por Agência Carta Maior.

8 de março: As mulheres faziam parte das "classes perigosas"

O dia 8 de março é dedicado à comemoração do Dia Internacional da Mulher. Atualmente tornou-se uma data um tanto festiva, com flores e bombons para uns. Para outros é relembrada sua origem marcada por fortes movimentos de reivindicação política, trabalhista, greves, passeatas e muita perseguição policial. A data foi uma proposta de Clara Zetkin (foto), membro do Partido Comunista Alemão, deputada em 1920, que militava junto ao movimento operário e se dedicava à conscientização feminina. 

O artigo é de Eva Alterman Blay. Eva Alterman Blay - Revista de Estudos Feministas (vol. 9)
No século XIX e no início do XX, nos países que se industrializavam, o trabalho fabril era realizado por homens, mulheres e crianças, em jornadas de 12, 14 horas, em semanas de seis dias inteiros e freqüentemente incluindo as manhãs de domingo. Os salários eram de fome, havia terríveis condições nos locais da produção e os proprietários tratavam as reivindicações dos trabalhadores como uma afronta, operárias e operários considerados como as "classes perigosas"

Sucediam-se as manifestações de trabalhadores, por melhores salários, pela redução das jornadas e pela proibição do trabalho infantil. A cada conquista, o movimento operário iniciava outra fase de reivindicações, mas em nenhum momento, até por volta de 1960, a luta sindical teve o objetivo de que homens e mulheres recebessem salários iguais, pelas mesmas tarefas. As trabalhadoras participavam das lutas gerais mas, quando se tratava da igualdade salarial, não eram consideradas. Alegava-se que as demandas das mulheres afetariam a "luta geral", prejudicariam o salário dos homens e, afinal, as mulheres apenas "completavam" o salário masculino.

Subjacente aos grandes movimentos sindicais e políticos emergiam outros, construtores de uma nova consciência do papel da mulher como trabalhadora e cidadã. Clara Zetkin, Alexandra Kollontai, Clara Lemlich, Emma Goldman, Simone Weil e outras militantes dedicaram suas vidas ao que posteriormente se tornou o movimento feminista.

Clara Zetkin propôs o Dia Internacional da Mulher
Clara Zetkin (1857-1933), alemã, membro do Partido Comunista Alemão, deputada em 1920, militava junto ao movimento operário e se dedicava à conscientização feminina. Fundou e dirigiu a revista "Igualdade", que durou 16 anos (1891-1907).

Líderes do movimento comunista como Clara Zetkin e Alexandra Kollontai, ou anarquistas como Emma Goldman, lutavam pelos direitos das mulheres trabalhadoras, mas o direito ao voto as dividia: Emma Goldman afirmava que o direito ao voto não alteraria a condição feminina se a mulher não modificasse sua própria consciência.

Ao participar do II Congresso Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhagem, em 1910, Clara Zetkin propôs a criação de um Dia Internacional da Mulher sem definir uma data precisa. Contudo, vê-se erroneamente afirmado no Brasil e em alguns países da América Latina que Clara teria proposto o 8 de Março para lembrar operárias mortas num incêndio em Nova Iorque em 1857. Os dados a seguir demonstram que os fatos se passaram de maneira diferente.

O movimento operário nos Estados Unidos
Assim como na Europa, era intenso o movimento trabalhador nos Estados Unidos desde a segunda metade do século XIX, sobretudo nos setores da produção mineira e ferroviária e no de tecelagem e vestuário.

A emergente economia industrial norte-americana, muito instável, era marcada por crises. Nesse contexto, em 1903 formou-se, pela ação de sufragistas e de profissionais liberais, a Women's Trade Union Leaguepara organizar trabalhadoras assalariadas. Com as crises industriais de 1907 e 1909 reduziu-se o salário dos trabalhadores, e a oferta de mão-de-obra era imensa, dada a numerosa imigração proveniente da Europa. Grande parte dos operários e operárias era de imigrantes judeus, muitos com um passado de militância política.

No último domingo de fevereiro de 1908, mulheres socialistas dos Estados Unidos fizeram uma manifestação a que chamaram Dia da Mulher, reivindicando o direito ao voto e melhores condições de trabalho. No ano seguinte, em Manhatan, o Dia da Mulher reuniu 2 mil pessoas.

Problemas muito conhecidos do operariado latino-americano impeliam trabalhadores e trabalhadoras a aderir às manifestações públicas por salários e pela redução do horário de trabalho. Embora o setor industrial tivesse algumas grandes empresas, predominavam as pequenas, o que dificultava a agregação e unicidade das reivindicações. O movimento por uma organização sindical era intenso e liderado no setor de confecções e vestuário por trabalhadores judeus com experiência política sindical, especialmente da União Geral dos Trabalhadores Judeus da Rússia e da Polônia (Der Alguemayner Yiddisher Arbeterbund in Russland un Poyln - BUND).

Para desmobilizar o apelo das organizações e controlar a permanência dos trabalhadores/as, muitas fábricas trancavam as portas dos estabelecimentos durante o expediente, cobriam os relógios e controlavam a ida aos banheiros. Mas as difíceis condições de vida e os baixíssimos salários eram forte incentivo para a presença de operários e operárias nas manifestações em locais fechados ou na rua.

Uma das fábricas, a Triangle Shirtwaist Company (Companhia de Blusas Triângulo), para se contrapor à organização da categoria, criou um sindicato interno para seus trabalhadores/as. Em outra fábrica, algumas trabalhadoras que reclamavam contra as condições de trabalho e salário foram despedidas e pediram apoio ao United Hebrew Trade, Associação de Trabalhadores Hebreus. Então as trabalhadoras da Triangle quiseram retirar alguns recursos do sindicato interno para ajudar as companheiras mas não o conseguiram. Fizeram piquetes na porta da Triangle, que contratou prostitutas para se misturarem às manifestantes, pensando assim dissuadi-las de seus propósitos. Ao contrário, o movimento se fortaleceu.

Uma greve geral começou a ser considerada pelo presidente da Associação dos Trabalhadores Hebreus, Bernardo Weinstein, sempre com o objetivo de melhorar as condições de trabalho da indústria de roupas. A idéia se espalhou e, em 22 de novembro de 1909, organizou-se uma grande reunião na Associação dos Tanoeiros liderada por Benjamin Feigenbaum e pelo Forward. (http://www.bnai-brith.com.br/content/mail/editar_press_especial.asp?cod=258#_ftn9). A situação era extremamente tensa e, durante a reunião, subitamente uma adolescente, baixa, magra, se levantou e pediu a palavra: "Estou cansada de ouvir oradores falarem em termos gerais. Estamos aqui para decidir se entramos em greve ou não. Proponho que seja declarada uma greve geral agora!". A platéia apoiou de pé a moção da jovem Clara Lemlich.

Política e etnia
No movimento dos trabalhadores as relações étnicas tinham peso fundamental, razão pela qual, para garantir um compromisso com a greve, Feigenbaum usou um argumento de extraordinária importância religiosa para os judeus. Ele perguntou à assembléia: "Vocês se comprometerão com o velho mandamento judaico?" Uma centena de mãos se ergueram e todos gritaram: "Se eu esquecer de vós, ó Jerusalém, que eu perca minha mão direita". Era um juramento de que não furariam a greve.

Cerca de 15 mil trabalhadores do vestuário, a maioria moças, entraram em greve, provocando o fechamento de mais de 500 fábricas. Jovens operárias italianas aderiram, houve prisões, tentativas de contratar novas trabalhadoras, o que tornou o clima muito tenso. A direção da greve ficou com a Associação dos Trabalhadores Hebreus e com o Sindicato Internacional de Trabalhadores na Confecção de Roupas de Senhoras International Ladies' Garment Workers' Union - ILGWU).

À medida que as grandes empresas cederam algumas reivindicações, a greve foi se esvaziando e se encerrou em 15 de fevereiro de 1910 depois de 13 semanas.

O incêndio
Pouco tinha sido alterado, sobretudo nas fábricas de pequeno e médio porte, e os movimentos reivindicatórios retornaram. A reação dos proprietários repetia-se: portas fechadas durante o expediente, relógios cobertos, controle total, baixíssimos salários, longas jornadas de trabalho.

O dia 25 de março de 1911 era um sábado, e às 5 horas da tarde, quando todos trabalhavam, irrompeu um grande incêndio na Triangle Shirtwaist Company, (http://www.bnai-brith.com.br/content/mail/editar_press_especial.asp?cod=258#_ftn13) que se localizava na esquina da Rua Greene com a Washington Place. A Triangle ocupava os três últimos de um prédio de dez andares. O chão e as divisórias eram de madeira, havia grande quantidade de tecidos e retalhos, e a instalação elétrica era precária. Na hora do incêndio, algumas portas da fábrica estavam fechadas. Tudo contribuía para que o fogo se propagasse rapidamente.

A Triangle empregava 600 trabalhadores e trabalhadoras, a maioria mulheres imigrantes judias e italianas, jovens de 13 a 23 anos. Fugindo do fogo, parte das trabalhadoras conseguiu alcançar as escadas e desceu para a rua ou subiu para o telhado. Outras desceram pelo elevador. Mas a fumaça e o fogo se expandiram e trabalhadores/as pularam pelas janelas, para a morte. Outras morreram nas próprias máquinas. O Forward publicou terríveis depoimentos de testemunhas e muitas fotos.

Morreram 146 pessoas, 125 mulheres e 21 homens, na maioria judeus.

A comoção foi imensa. No dia 5 de abril houve um grande funeral coletivo que se transformou numa demonstração trabalhadora. Apesar da chuva, cerca de 100 mil pessoas acompanharam o enterro pelas ruas do Lower East Side. No Cooper Union falou Morris Hillquit e no Metropolitan Opera House, o rabino reformista Stephen Wise.

A tragédia teve conseqüências para as condições de segurança no trabalho e sobretudo serviu para fortalecer o ILGWU.

Para autores como Sanders, todo o processo, desde a greve de 1909, mais o drama do incêndio da Triangle, acabou fortalecendo o reconhecimento dos sindicatos. O ILGWU, de conotação socialista e um dos braços mais 'radicais' do American Federation of Labour (AFL), se tornou o maior e mais forte dos Estados Unidos naquele momento.

Atualmente no local onde se deu o incêndio foi construída a Universidade de Nova Iorque. Uma placa, lembrando o terrível episódio, foi lá colocada:

"Neste lugar, em 25 de março de 1911, 146 trabalhadores perderam suas vidas no incêndio da Companhia de Blusas Triangle. Deste martírio resultaram novos conceitos de responsabilidade social e legislação do trabalho que ajudaram a tornar as condições de trabalho as melhores do mundo." (ILGWU)

Mulheres e movimentos sociais
No século XX, as mulheres trabalhadoras continuaram a se manifestar em várias partes do mundo: Nova Iorque, Berlim, Viena (1911); São Petersburgo (1913). Causas e datas variavam. Em 1915, Alexandra Kollontai organizou uma reunião em Cristiana, perto de Oslo, contra a guerra. Nesse mesmo ano, Clara Zetkin faz uma conferência sobre a mulher. Em 8 de março 1917 (23 de fevereiro no Calendário Juliano), trabalhadoras russas do setor de tecelagem entraram em greve e pediram apoio aos metalúrgicos. Para Trotski esta teria sido uma greve espontânea, não organizada, e teria sido o primeiro momento da Revolução de Outubro.

Na década de 60, o 8 de Março foi sendo constantemente escolhido como o dia comemorativo da mulher e se consagrou nas décadas seguintes. Certamente esta escolha não ocorreu em conseqüência do incêndio na Triangle, embora este fato tenha se somado à sucessão de enormes problemas das trabalhadoras em seus locais de trabalho, na vida sindical e nas perseguições decorrentes de justas reivindicações.



Lenin: o que importava era a política de massas e não o direito das mulheres

Mulheres e homens jovens tinham muitas outras preocupações além das questões trabalhistas e do sistema político. Nem sempre a liderança comunista entendia essas necessidades, como foi o caso de Lenin e de muitos outros líderes. Em seu Diário, Clara Zetkin relata o que ouvira do camarada e amigo Lenin, ao visitá-lo no Kremlin, em 1920. Lenin lamentava o descaso pelo Dia Internacional da Mulher que ela propusera em Copenhagem, pois este teria sido um oportuno momento para se criar um movimento de 'massa', internacionalizar os propósitos da Revolução de 17, agitar mulheres e jovens. Para alcançar este objetivo, afirmava ele, era necessário discutir exclusivamente os problemas políticos e não perder tempo com aquelas discussões que os jovens trabalhadores traziam para os grupos políticos, como casamento e sexo. Lenin estendia suas críticas ao trabalho de Rosa Luxemburgo com prostitutas: "Será que Rosa Luxemburgo não encontrava trabalhadores para discutir, era necessário buscar as prostitutas?"

Esta visão de Lenin fez escola na esquerda. A experiência do 'amor livre' nos primeiros anos pós-Revolução trouxe enormes conflitos que levaram à restauração do sistema de família regulamentado pelo contrato civil. Temas relativos ao corpo, à sexualidade, à reprodução humana, relação afetiva entre homens e mulheres, aborto, só foram retomados 40 anos mais tarde pelo movimento feminista.


O 8 de Março no Brasil

No Brasil vê-se repetir a cada ano a associação entre o Dia Internacional da Mulher e o incêndio na Triangle quando na verdade Clara Zetkin o tenha proposto em 1910, um ano antes do incêndio. É muito provável que o sacrifício das trabalhadoras da Triangle tenha se incorporado ao imaginário coletivo da luta das mulheres. Mas o processo de instituição de um Dia Internacional da Mulher já vinha sendo elaborado pelas socialistas americanas e européias há algum tempo e foi ratificado com a proposta de Clara Zetkin.

Nas primeiras décadas do século XX, o grande tema político foi a reivindicação do direito ao voto feminino. Berta Lutz, a grande líder sufragista brasileira, aglutinou um grupo de mulheres da burguesia para divulgar a demanda. Ousadas, espalharam de avião panfletos sobre o Rio de Janeiro, pedindo o voto feminino, no início dos anos 20!

Pressionaram deputados federais e senadores e se dirigiram ao presidente Getúlio Vargas. Afinal, o direito ao voto feminino foi concedido em 1933 por ele e garantido na Constituição de 1934. Mas só veio a ser posto em prática com a queda da ditadura getulista, e as mulheres brasileiras votaram pela primeira vez em 1945.

Em 1901, as operárias, que juntamente com as crianças constituíam 72,74% da mão-de-obra do setor têxtil, denunciavam que ganhavam muito menos do que os homens e faziam a mesma tarefa, trabalhavam de 12 a 14 horas na fábrica e muitas ainda trabalhavam como costureiras, em casa. Como mostra Rago, a jornada era de umas 18 horas e as operárias eram consideradas incapazes física e intelectualmente. Por medo de serem despedidas, submetiam-se também à exploração sexual.

Os jornais operários, especialmente os anarquistas, reproduziam suas reclamações contra a falta de higiene nas fábricas, o assédio sexual, as péssimas condições de trabalho, a falta de pagamento de horas extras, um sem número de abusos. Para os militantes operários, a fábrica era um local onde as mulheres facilmente se prostituíam, daí reivindicarem a volta das mulheres para casa. Patrões, chefes e empregados partilhavam dos mesmos valores: olhavam as trabalhadoras como prostitutas.

Entre as militantes das classes mais altas, a desqualificação do operariado feminino não era muito diferente: partilhavam a imagem generalizada de que operárias eram mulheres ignorantes e incapazes de produzir alguma forma de manifestação cultural. A distância entre as duas camadas sociais impedia que as militantes burguesas conhecessem a produção cultural de anarquistas como Isabel Cerruti e Matilde Magrassi, ou o desempenho de Maria Valverde em teatros populares como o de Arthur Azevedo .

Como as anarquistas americanas e européias, as brasileiras (imigrantes ou não) defendiam a luta de classes mas também o divórcio e o amor livre, como escrevia "A Voz do Trabalhador" de 1° de fevereiro de 1915:

"Num mundo em que mulheres e homens desfrutassem de condições de igualdade... Vivem juntos porque se querem, se estimam no mais puro, belo e desinteressado sentimento de amor".

A distinção entre anarquistas e comunistas foi fatal para uma eventual aliança: enquanto as comunistas lutavam pela implantação da "ditadura do proletariado", as anarquistas acreditavam que o sistema partidário reproduziria as relações de poder, social e sexualmente hierarquizadas.

No PC a diferenciação de gênero continuava marcante: as mulheres se encarregavam das tarefas 'femininas' na vida quotidiana do Partido. Extremamente ativas, desenvolveram ações externas de organização sem ocupar qualquer cargo importante na hierarquia partidária. Atuavam, por exemplo, junto a crianças das favelas ou dos cortiços, organizavam colônias de férias, supondo que poderiam ensinar às crianças novos valores.

Zuleika Alembert, a primeira mulher a fazer parte da alta hierarquia do PC, eleita deputada estadual por São Paulo em 1945, foi expulsa do Partido quando fez críticas feministas denunciando a sujeição da mulher em seu próprio partido.

O feminismo dos anos 60 e 70 veio abalar a hierarquia de gênero dentro da esquerda. A luta das mulheres contra a ditadura de 1964 uniu, provisoriamente, as feministas e as que se autodenominavam membros do 'movimento de mulheres'. A uni-las, contra os militares, havia uma data: o 8 de Março. A comemoração ocorria através da luta pelo retorno da democracia, de denúncias sobre prisões arbitrárias, desaparecimentos políticos.

A consagração do direito de manifestação pública veio com o apoio internacional - a ONU instituiu, em 1975, o 8 de Março como o Dia Internacional da Mulher.

Entrou-se numa nova etapa do feminismo. Mas velhos preconceitos permaneceram nas entrelinhas. Um deles talvez seja a confusa história propalada do 8 de Março, em que um anti-americanismo apagava a luta de tantas mulheres, obscurecendo até mesmo suas origens étnicas.




Guerra dos gêneros & guerra aos gêneros*
Suely Rolnik

No visível, o óbvio: uma guerra entre identidades sexuais, lutando por seus interesses; especialmente o assim chamado gênero feminino oprimido em luta contra o assim chamado gênero masculino, seu opressor. Mas só aqui dá para captar algo desta ordem, já que neste plano os personagens são feitos de figuras através das quais eles se representam, assim como nós os representamos; tais figuras são efetivamente classificáveis em identidades ou gêneros e funcionam segundo uma lógica binária de oposições e contradições, cujo atrito pode transformar-se em conflito.

Já no invisível a coisa se complica, impossível aqui registrar algo da ordem do gênero, com sua lógica binária e suas oposições. E mais: neste plano o que se capta é a produção do que justamente acaba por desestabilizar as figuras e, junto com isso, o quadro classificatório dos gêneros, sejam eles sexuais, raciais, étnicos ou outros quaisquer. São movimentos de forças/fluxos desenhando certas composições e desfazendo outras; aglutinações de novas composições produzindo diferenças, origem de pequenos abalos sísmicos nas figuras vigentes; acumulações progressivas de diferenças/abalos provocando terremotos. Figuras se desmancham, outras se esboçam; gêneros e identidades se embaralham, outros se delineam - e a paisagem vai mudando de relêvo. Uma lógica das multiplicidades e dos devires rege a simultaneidade dos movimentos que compõem este plano. Estamos longe dos binarismos.

Entre os planos, portanto, uma disparidade inelutável; nada a ver com oposição. No invisível, a infinitude do processo de produção de diferenças; no visível, a finitude das figuras nas quais os personagens se reconhecem, com suas identidades e seus gêneros. É notório o mal-estar que tal disparidade mobiliza: há sempre um ou mais personagens tomados por um estranho estado de desterritorialização, como que perdidos numa terra desconhecida sem no entanto sequer ter saído do lugar. São os momentos em que os personagens mais se apegam ao gênero, como numa espécie de tábua de salvação; passam a reivindicá-lo em altos brados e, raivosamente, atribuem ao gênero oposto a origem de seu desassossego. Este estado por vezes os leva a agrupar-se e o tumulto então se avoluma. Isto é o que registrariam radares caso pudessem rastrear a guerra dos gêneros tal como vem se travando nas últimas décadas.

No campo da subjetividade, pode-se distinguir culturas e épocas tomando como referência quanto e como se transita entre os planos visível e invisível; quanto e como se lida com a disparidade entre a finitude das figuras e a infinitude da produção de diferenças; quanto e como se encara o mal-estar que tal disparidade mobiliza. Muitas são as modalidades praticadas. No contemporâneo, por exemplo: se ampliássemos o espectro de nossos radares de modo a rastrear o ambiente em que eclode a guerra dos gêneros, os sensores sem dúvida registrariam a predominância de uma modalidade de subjetivação em que pouco se transita entre os planos. O que exatamente veríamos? Personagens que tendem a viver confinados no plano da representação, como se só existisse o que o olho alcança, insensíveis às forças e, consequentemente, às diferenças que suas composições engendram. Quase nada se registra no ambiente que pareça acolher o estranhamento que a disparidade entre os planos provoca; pelo contrário, quase tudo leva a crer que é possível instalar-se vitalício numa determinada figura sem que jamais tremam seus contornos; a impresssão é de que se acredita que tremores são pura expressão de fraqueza e que os fortes não tem isso. Há uma glamourização destas supostas figuras estáveis e donas de si, especialmente insuflada pela mídia, e que produz miragens de eternos vencedores. No reluzente espelho de tais miragens, é grande a chance de, em algum momento, os personagens enxergarem-se como fracassados: a cada vez que um deles é abalado pela disparidade entre os planos, a reação mais comum é tomar o mal-estar que este abalo mobiliza como sinal de alarme anunciando perigo de desagregação; um verdadeiro calvário. Quando diferenças irrompem em cena, convulsionando as figuras estabelecidas, não se observa qualquer esboço de movimento de construção de modos de existência que as corporifiquem; o que cai na trama do espectro são personagens correndo esbaforidos de um lado para o outro, feito baratas tontas. Atordoados, eles parecem estar à cata de figuras idealizadas para identificar-se, de modo a reconstituir-se o mais rapidamente possível e encontrar seu lugar neste magma homogeinizado de subjetividades. Quando conseguem, alimentam sua ilusão de estabilidade e parecem apaziguar-se; mas o prêço que pagam é ver a vida enquanto potência de diferenciação, escapando de suas mãos. É nítida sua desvitalização. Mas certamente não seria apenas isto o que detectariam radares, se implantados nesta virada de século. Um espantoso avanço das tecnologias de informação e de comunicação de massa, faria aparecer na trama de seu espectro um fato curioso: a maioria dos personagens, independentemente de onde estejam, encontram-se habitados pelo planeta inteiro ao mesmo tempo; uma imensa riqueza de forças/fluxos e, por consequência, de mestiçagens virtuais, aumenta indubitavelmente a potencialidade de engendramento de diferenças e de criação de mundos. Paradoxalmente, é evidente a limitação destes personagens para processar tamanha abundância; intolerantes à desestabilização, eles não se deixam facilmente afetar pelos efeitos das misturas em sua subjetividade. É gritante o contraste que se observa entre a exuberância de mundos virtuais e a mesmice das figuras em torno das quais se organizam.



Prognóstico: 
o quadro pede uma mudança na política de subjetivação vigente. Parece que se há uma guerra a ser travada ela teria como um de seus principais alvos a libertação do confinamento no visível. Para isso seria preciso criar condições para que a experiência do mal-estar provocado pela disparidade fosse menos traumática e mais produtiva. Senão, corre-se o risco de a riqueza da paisagem contemporânea transformar-se em inferno: quando as figuras estabelecidas são tomadas como identidades e seu abalo traumaticamente interpretado como ameaça de desagregação, para manter-se no mesmo lugar, se é capaz de fazer qualquer coisa, inclusive matar. A guerra dos gêneros é um exemplo disto, sem dúvida dos mais amenos se pensarmos no que se tem feito em nome de identidades nacionais, religiosas, étnicas e raciais. Mas esta visão da guerra dos gêneros não contradiz o sentido emancipador que se costuma atribuir-lhe? Sim e não: é verdade que esta guerra é de certo modo indispensável para que personagens do gênero oprimido, desqualificados socialmente, conquistem direitos civis e dignidade; mas não é menos verdade que ela os mantém confinados numa identidade, invertendo apenas seu valor, que de negativo se transforma em positivo. E o mais curioso é que esta simples inversão, além de manter tais personagens no mesmo lugar, às vezes até os reforça em seu modo de subjetivação identitário: fica adiado o confronto com a finitude e o trabalho que se faz necessário para dar vasão às diferenças emergentes. É que este trabalho implica a criação de contornos subjetivos singulares e efêmeros - e portanto não generalizáveis -, já que singulares e efêmeras são as misturas de forças/fluxos de que é feita cada diferença que vai se produzindo ao longo da existência. Caso de fato existissem radares apropriados para rastrear este tipo de guerra, o que eles implacavelmente nos mostrariam é que enquanto gêneros se degladiam no plano visível por uma causa politicamente correta - a luta por uma igualdade de direitos, que aliás no Brasil são especialmente desiguais -, no plano invisível, há uma proliferação de diferenças produzidas por uma hibridação cada vez maior de forças/fluxos, que não conseguem encontrar canais para sua existencialização. E quanto mais se degladiam os gêneros, mais se afirmam as identidades e menos canais se abrem para as diferenças; reciprocamente, quanto mais proliferam diferenças e mais aumenta sua pressão, mais apavoradas ficam as subjetividades com suas supostas identidades e mais defensivamente as enrijecem na tentativa de manter a ilusão de sua eternidade e proteger-se do terror que a finitude provoca.

Avaliar esta situação fazendo um esforço para nos deslocar de uma lógica da representação em direção a uma lógica das multiplicidades e dos devires, própria da dinâmica entre os planos, nos deixa um tanto perplexos. Explorada desta perspectiva, a guerra entre gêneros revela sua faceta de guerra a favor da perpetuação de gêneros e contra a processualidade da vida enquanto produção de diferenças.

Conclusão: se quisermos evitar que a guerra politicamente correta dos e pelos gêneros se transforme numa guerra politicamente nefasta para a vida, será preciso travar simultaneamente uma guerra contra a redução das subjetividades a gêneros, a favor da vida e suas misturas. Neste ponto, o Brasil me parece ter algo a dizer na questão dos gêneros. Trazemos a marca de uma certa facilidade para nos desfazer das figuras vigentes, e com elas das identidades e gêneros, sempre que necessário. Nossa fundação e nossa história é pontuada por mestiçagens. Habituados a nascer e renascer das misturas, somos constitutivamente híbridos; borram-se em nós desde o início as fronteiras entre figuras. Um dos movimentos do Modernismo brasileiro colheu esta marca de nossa cultura e decidiu afirmá-la positivamente, chamando-a de "Antropofagia". Estendendo esta idéia, hoje, para o campo do desejo, diríamos que antropofágico é o próprio processo de composição e hibridação das forças/fluxos, o qual acaba sempre devorando as figuras da realidade objetiva e subjetiva e, virtualmente, engendrando outras.

O grau de abertura para a antropofagia das forças/fluxos pode ser um critério para distinguir diferentes modos de subjetivação. Por este critério, diríamos que um modo de subjetivação é antropofágico quando tende a se constituir como existencialização das virtualidades engendradas na mestiçagem das forças/fluxos e não como resistência contra a finitude. Em outras palavras, um modo antropofágico de subjetivação se reconheceria pela presença de um grau considerável de abertura, o que implica numa certa fluidez: encarnar o mais possível a antropofagia das forças, deixando-se desterritorializar, ao invés de se anestesiar de pavor; dispor do maior jogo de cintura possível para improvisar novos mundos toda vez que isso se faz necessário, ao invés de bater o pé no mesmo lugar por medo de ficar sem chão. A antropofagia seria o princípio organizador deste modo de subjetivação. Um princípio radicalmente ateu, imanente à produção da realidade, cuja referência é a processualidade: as diferenças emergentes a partir das quais se traçará novos territórios e, indissociavelmente, suas cartografias. Opera-se aqui um deslocamento do princípio que tem por referência uma representação de si e do mundo tomada a priori, seja ela qual for, mesmo que em nome de uma causa politicamente correta. Se o Brasil tem algum know how a oferecer para a guerra dos gêneros seria mais na direção de uma guerra contra a perpetuação dos gêneros. Isto passa pelo rastreamento de dispositivos que permitam desmobilizar o terror que a antropofagia nos causa, condição indispensável para incorporá-la como princípio organizador de nossos processos de subjetivação. A importância deste tipo de know how extrapola a guerra dos gêneros. A miscigenação contemporânea requer que mudemos o princípio que rege nossos processos de subjetivação, depurando-o dos resquícios do modelo que reduz a subjetividade à representação, se quisermos ampliar nossas chances de processar a riqueza que temos em mãos. Ao lado da guerra de gêneros é preciso cada vez mais levar uma guerra dos habitantes dos devires contra os adictos dos gêneros, inclusive e antes de mais nada, na arena de nossa própria subjetividade. Uma guerra de híbridos, mestiços, antropofágicos.



Resumo

Primeira opção:
A guerra dos gêneros é abordada no sentido macro e micropolítico. A macropolítica concerne a realidade individual e coletiva enquanto representação, cujas figuras definem identidades e suas classificações dualistas - por exemplo, a classificação em gêneros. A micropolítica concerne a mesma realidade, mas enquanto multiplicidade de fluxos, cujas composições engendram as transformações de suas figuras e, portanto, de identidades e gêneros. Se a guerra dos gêneros, do ponto de vista macropolítico, é condição para que o gênero oprimido conquiste igualdade de direitos e dignidade, já do ponto de vista micropolítico ela implica o risco de uma redução das subjetividades ao gênero, o que pode brecar os processos de mudança. É sugerido que ao lado da guerra macropolítica dos gêneros seja travada uma guerra micropolítica contra tal tendência redutora. A marca da antropofagia virtualmente presente nas subjetividades brasileiras as tornaria potencialmente aptas para levar este segundo tipo de guerra.


Segunda opção:
A guerra dos gêneros é abordada no sentido macro e micropolítico. Se do ponto de vista macropolítico esta guerra é condição para que o gênero oprimido conquiste igualdade de direitos e dignidade, já do ponto de vista micropolítico ela implica o risco de uma redução das subjetividades ao gênero, o que pode brecar os processos de mudança. É sugerido que ao lado da guerra macropolítica dos gêneros seja travada uma guerra micropolítica contra tal tendência redutora. A marca da antropofagia virtualmente presente nas subjetividades brasileiras as tornaria potencialmente aptas para levar este segundo tipo de guerra.


* Ensaio escrito sob encomenda de TRANS. Arts. Cultures. Media (Nova York, Passim, inc.), para a abertura da seção «Genders War» no no 3 da revista (1996, no prelo).







O RECALQUE DO FEMININO


"Um dos tantos elementos que nos levaram à crise atual é o recalque do feminino. Feminino não se identifica com mulher. Feminino/masculino é uma determinação de cada pessoa humana, homem e mulher. Feminino é a dimensão de interioridade, de cuidado, de respeito à vida e ao mistério do mundo, que todos devemos desenvolver. As mulheres realizam a seu modo esta dimensão. Mas os homens também a podem realizar, à sua maneira.

Ocorre que a cultura moderna se assenta sobre o poder. Essa vontade de poder recalcou a dimensão feminina, nos homens, nas mulheres, na sociedade e nas religiões. É uma cultura do trabalho para fora, da exterioridade, do uso do poder-dominação na relação entre os humanos e para com a natureza.

Então temos uma ciência machista, uma sociedade fundamentalmente masculina e igrejas misógenas. Por isso vivemos num estilo de sociedade pobre, sem a irradiação da “anima”. E as mulheres foram as maiores vítimas deste estilo de vida.

Ora, as mulheres são mais da metade da humanidade e são as irmãs e as mães da outra metade, quer dizer, dos homens. Como pode ser sã uma sociedade que se assenta sobre a violência sobre os outros, na agressão contra a natureza e na marginalização das mulheres.
A democracia social e participativa surge como uma palavra–chave no sentido de integrar as diferenças para além do socialismo burocrático e do capitalismo. O ser humano, entendido como um ser de relações, é um ser singular. Um (eu) que ao mesmo tempo está em comunidade (nós). Portanto, pode superar a cultura do eu sem o nós que o capitalismo criou, e também a cultura do nós sem o eu que o socialismo burocrático produziu com o coletivismo. A participação, a igualdade, a diferença e a comunhão são as quatro pernas que juntas compõem o novo sonho de uma humanidade comunitária, participativa, solidária e espiritual.

Esta democracia aberta terá mais possibilidade de integrar a dimensão do feminino nas pessoas e na cultura. As mulheres então, poderão estar em pé de igualdade com os homens; juntos, homens e mulheres assumirão, cada qual com sua diferença, a totalidade das tarefas familiares e públicas. Não o sexo mas a pessoa será o valor de referência.

Por causa da participação pública da mulher, certamente, acontecerão mais cuidado, ternura e proteção com referência à vida e à vida dos seres mais fracos ou penalizados pela natureza e pela história. Por causa da superação do machismo e da integração do feminino, haverá menos conflitos desestruturadores das relações humanas e cósmicas".

Leonardo Boff. 




A perspectiva de revoluções moleculares como havia pensado Félix Guattari:

"como imaginar que máquinas de guerra revolucionária de tipo novo consigam se engastar ao mesmo tempo nas contradições sociais manifestas e nessa revolução molecular? 


  A atitude da classe política e da maioria dos militantes profissionais, quanto a esses problemas, embora reconheçam a importância desses novos domínios de contestação geralmente consiste em declarar que nada de positivo se deve esperar de imediato: 

'Primeiro, é preciso que tenhamos alcansado nossos objetivos no plano político antes de podermos intervir nessas questões de vida cotidiana, escola, relação entre grupos, convívio, ecologia, etc...' . 

Quase todas as correntes da esquerda, da extrema-esquerda, da autonomia, etc. (situação manifesta na Itália no período de 1977) se encontram nessa posição. Cada um a seu modo está disposto a explorar os "novos movimentos sociais" que se manifestam a partir dos anos 60, mas ninguém nunca se coloca a questão de se imaginar os instrumentos de luta realmente adaptados àqueles.(...)


(...) As organizações políticas e sindicais atuais aos poucos foram se tornando assimiláveis aos equipamentos de poder. Independentemente do fato de aqueles que participam delas se declararem de esquerda ou de direita, elas funcionam de acordo com o conformismo geral: trabalham para que os processos moleculares entrem em conformidade com as estratificações molares. De fato, o CMI (capitalismo mundial integrado) nutre-se desse gênero de equipamento de poder. As economias ocidentais não poderiam funcionar hoje sem os sindicatos, as comissões de fábrica, os seguros sociais, os partidos de esquerda e talvez também... os grupelhos de extrema-esquerda.


  Portanto não há muito que esperar desse lado. pelo menos na Europa. Pois em países, como por exemplo, os da América Latina esse tipo de formação talvez ainda deva desempenhar um papel importante. (Embora, também aí, as questões relativas à revolução molecular sem dúvida se colocarão com uma agudeza cada vez mais forte: questão racial, questão feminina, questão das favelas, etc.) De qualquer modo, compromissos, composições reformistas continuarão a surgir nos países capitalistas desenvolvidos. Manifestações simbólicas ou violentas continuarão a animar a atualidade. Mas nada disso nos aproximará de maneira alguma de um verdadeiro processo de transformação revolucionária. (...)



(...) Muitos dos que experimentaram o carárer pernicioso das formas tradicionais do militantismo contentam-se, hoje, em reagir de maneira mecanicamente hostil a qualquer forma de organização, e mesmo a qualquer pessoa que pretendesse, por exemplo, assumir a presidência de uma reunião, a redação de um texto, etc. Na medida em que a primeira preocupação de um movimento revolucionário fosse uma altêntica união entre as lutas molares e os investimentos moleculares, a questão da criação de instrumentos não só de informação, mas também de decisão e de organização, se colocaria de uma nova forma. (em escala microsocial, local, nacional, internacional.) Com tudo o que isso possa eventualmente implicar de rigor e de disciplina de ação, em certas situações, mas segundo métodos radicalmente diferentes dos métodos dos social-democratas e dos bolcheviques.(...)".


Fim de citação - (Félix Guattari - ed. brasiliense, 1987 - Revolução molecular: pulsações políticas do desejo, capítulo - O capitalismo mundial integrado e a revolução molecular, item III. Novas máquinas de guerra revolucionária, agenciamentos do desejo e luta de classe, páginas 221 - 223).





DESAFIOS À TRANSIÇÃO DE MODELOS NA RELAÇÃO ENTRE OS GÊNEROS: A "SÍNDROME DE ALIENAÇÃO PARENTAL".








Artigos sobre o tema
Síndrome de alienação parental
São Paulo 7 agosto 2006

Parental alienation syndrome
Síndrome de alienación parental

Resumo

Objetivo: destacar a importância da síndrome de alienação parental sob o enfoque da Ciência Jurídica. Aspectos abordados: 1. conceito; 2. causas determinantes do processo de alienação; 3. graus e extensão da alienação; 4. meios para obter a alienação parental; 5. elementos de identificação da alienação parental; 6. conseqüências da alienação parental; 7. a repressão judicial à alienação parental; 8. o papel do advogado diante da alienação parental. Conclusões: identificar a alienação parental e evitar que esse maléfico processo afete a criança e se converta em síndrome são tarefas que se impõem aoo Poder Judiciário. O advogado que milita na área do direito de família deve priorizar a defesa do menor, mesmo quando procurado pelo genitor alienante para a defesa de seus direitos, inclusive com a recusa ao patrocínio da causa do progenitor alienante.

Descritores: Maus tratos infantis. Leis. Ética. Criança

Abstract

Objective: to highlight the importance of the parental alienation syndrome through the Legal Science approach. Approached aspects: 1. concept; 2 determinant causes of the alienation process; 3. degree and extension of the alienation; 4. how to get parental alienation; 5. elements of identification of parental alienation; 6. consequences of the parental alienation; 7. judicial repression of parental alienation; 8. the role of the lawyer in parental alienation. Conclusions: to identify the parental alienation and prevent this harmful process from affecting the child and converting into a syndrome are tasks for the Justice. The family law lawyer must prioritize the child and adolescent, even when the alienating parents demand their rights, including the refusal to support the cause of the alienating parent.

Keywords: Neglected child. Laws. Ethics. Child.

Resumen

Objetivo: destacar la importancia del síndrome de alienación parental sobre enfoque de la Ciencia Jurídica. Aspectos abordados: 1. concepto; 2. causas determinantes del proceso de alienación; 3. grados y extensión de la alienación; 4. medios para obtener la alienación parental; 5. elementos de identificación de la alienación parental: 6. consequencias de la alienación parental; 7. la represión judicial a la alienación parental; 8. el papel del abogado delante de la alienación parental. Conclusiones: identificar la alienación parental y evitar que este maléfico proceso afecte al niño y se convierta en síndrome son tareas para el Poder Judicial. El abogado que milita en el área del derecho de família debe priorizar la defensa del niño, inclusive con la recusa al patrocínio de la causa del progenitor alienante.

Palabras clave: Maus tratos. Leyes. Ética. Niño.



1. Conceito

Uma vez consumada a separação do casal e outorgada a guarda dos filhos a um dos ex-consortes, assiste ao outro, como cediço, o direito-dever de com eles estar. É o chamado direito de visitas, o qual não compreende, ao contrário do que possa parecer, apenas o contato físico e a comunicação entre ambos, mas o direito de o progenitor privado da custódia participar do crescimento e da educação do menor. Trata-se de uma forma de assegurar a continuidade da convivência entre o filho e o genitor não-guardião, ou seja, do vínculo familiar, minimizando, assim, a desagregação imposta pela dissolução do casamento.

O regime de visitas estabelecido no acordo de separação ou determinado pelo juiz objetiva, desse modo, não apenas atender os interesses e as necessidades do genitor não-titular da guarda, mas principalmente aqueles referentes ao próprio menor. Por essa razão, o exercício do direito de visitas não pode ser embaraçado ou suprimido, a não ser que circunstâncias extremamente graves assim recomendem.

Lamentavelmente, e com maior freqüência do que se supõe, reiteradas barreiras são postas pelo guardião à realização das visitas. Como se demonstrará mais adiante, não são poucos os artifícios e manobras de que se vale o titular da guarda para obstaculizar os encontros do ex-cônjuge com o filho: doenças inexistentes, compromissos de última hora, etc. E o que é pior e mais grave: tais impedimentos vêm ditados por inconcebível egoísmo, fruto exclusivo da animosidade que ainda reina entre os ex-consortes, sendo certo que, sem qualquer pejo, em nome de tais espúrios sentimentos, a criança é transformada em instrumento de vingança.

Esquecem os genitores que a criança, desde o nascimento, tem direito ao afeto, à assistência moral e material e à educação1. E não é por outra razão que a Constituição Brasileira no art. 227 estabelece ser "dever da família (...) assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito (...) à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão"2.

Pois bem, o ex-consorte - geralmente o detentor da custódia, que intenta afastar o filho do relacionamento com o outro genitor -, promove aquilo que se denomina alienação parental. Essa situação pode dar ensejo ao aparecimento de uma síndrome, a qual exsurge do apego excessivo e exclusivo da criança com relação a um dos genitores e do afastamento total do outro. Apresenta-se como o resultado da conjugação de técnicas e/ou processos que, consciente ou inconscientemente, são utilizados pelo genitor que pretende alienar a criança, a que se alia a pouca vontade da criança em estar com o genitor não-titular da guarda. Nos EUA, denomina-se "alienador ingênuo" (naive alienator) aquele que procura, inconscientemente, afastar o outro genitor do convívio com o filho.

A criança que padece do mal se nega terminante e obstinadamente a manter qualquer tipo de contato com um dos genitores, independentemente de qualquer razão ou motivo plausível3. Cuida-se, na verdade, de um sentimento de rejeição a um dos genitores, sempre incutido pelo outro genitor no infante, fato que, em um primeiro momento, leva o petiz a externar - sem justificativas e explicações plausíveis - apenas conceitos negativos sobre o progenitor do qual se intenta alienar e que evolui, com o tempo, para um completo e, via de regra, irreversível afastamento, não apenas do genitor alienado, como também de seus familiares e amigos.

Essa alienação pode perdurar anos seguidos, com gravíssimas conseqüências de ordem comportamental e psíquica, e geralmente só é superada quando o filho consegue alcançar certa independência do genitorguardião, o que lhe permite entrever a irrazoabilidade do distanciamento a que foi induzido.

A esse processo patológico dá-se o nome de síndrome de alienação parental, identificada em 1985 pelo professor de Psiquiatria Infantil da Universidade de Columbia (EUA), doutor Richard A. Gardener4. Do ponto de vista médico, relativamente à criança, a
síndrome é uma forma de abuso emocional5, punida nos EUA, segundo o Family Court Act, com a perda da guarda e a supressão do direito de visitas por parte do genitor responsável pela alienação6.

Àquele que busca arredar a presença do outro genitor da esfera de relacionamento com o filho outorga-se o nome de "progenitor alienante" e ao outro, de cujo contato se subtrai a criança, de "progenitor alienado". Geralmente o papel de progenitor alienante cabe à mãe, e o de alienado, ao pai.

A síndrome da alienação parental não se confunde, portanto, com a mera alienação parental. Aquela geralmente é decorrente desta, ou seja, a alienação parental é o afastamento do filho de um dos genitores, provocado pelo outro, via de regra, o titular da custódia. A síndrome da alienação parental, por seu turno, diz respeito às seqüelas emocionais e comportamentais de que vem a padecer a criança vítima daquele alijamento. Assim, enquanto a síndrome refere-se à conduta do filho que se recusa terminante e obstinadamente a ter contato com um dos progenitores, que já sofre as mazelas oriundas daquele rompimento, a alienação parental relaciona-se com o processo desencadeado pelo progenitor que intenta arredar o outro genitor da vida do filho. Essa conduta alienante, quando ainda não deu lugar à instalação da síndrome, é reversível e permite - com o concurso de terapia e auxílio do Poder Judiciário - o restabelecimento das relações com o genitor preterido7. Já a síndrome, segundo as estatísticas divulgadas por Darnall, somente cede, durante a infância, em 5% dos casos7.

Essa patologia afeta mais os meninos, pois são os que mais sofrem com a ausência paterna, em idade que varia entre oito e 11 anos. Crianças mais velhas tendem a opor maior resistência à pressão do genitor alienante, já que têm um pouco mais de independência e de vontade própria8.



2. Causas determinantes do processo de alienação

Malgrado o objetivo da alienação seja sempre o mesmo - o banimento do outro genitor da vida do filho, as razões que levam o genitor alienante a promovê-la se denotam bastante diversificadas. Pode resultar das circunstâncias e/ou, de se tratar o genitor alienante de pessoa exclusivista, ou ainda, que assim procede motivado por um espírito de vingança ou de mera inveja.

Muitas vezes o afastamento da criança vem ditado pelo inconformismo do cônjuge com a separação; em outras situações, funda-se na insatisfação do genitor alienante, ora com as condições econômicas advindas do fim do vínculo conjugal, ora com as razões que conduziram ao desfazimento do matrimônio, principalmente quando este se dá em decorrência de adultério e, mais freqüentemente, quando o ex-cônjuge prossegue a relação com o parceiro da relação extra-matrimonial. Neste último caso, o alijamento dos filhos de um dos pais resulta de um sentimento de retaliação por parte do ex-cônjuge abandonado, que entrevê na criança o instrumento perfeito da mais acabada vindita. Pode suceder, também, que a exclusividade da posse dos filhos revele-se como conseqüência do desejo de não os ver partilhar da convivência com aqueles que vierem a se relacionar com o ex-cônjuge - independentemente de terem sido eles os responsáveis pelo rompimento do vínculo matrimonial. Em outra hipótese, não de rara ocorrência, a alienação promovida apresenta-se como mero resultado da posse exclusiva que o ex-cônjuge pretende ter sobre os filhos.

São situações que se repetem na prática, muito embora os motivos que as ditem mostrem natureza diversa: às vezes é a solidão a que se vê relegado o ex-cônjuge, especialmente quando não tem familiares próximos - isolamento que o leva a não prescindir da companhia dos filhos; outras vezes é a falta de confiança, fundada ou infundada, que o ex-cônjuge titular da guarda nutre pelo ex-consorte para cuidar dos filhos; outras vezes é a falta de confiança, fundada ou infundada, que o excônjuge titular da guarda nutre pelo ex-consorte para cuidar dos filhos. Em determinadas situações, a alienação representa mera conseqüência do desejo de o alienante deter, apenas para si, o amor do filho, algumas outras vezes resulta do ódio que o genitor alienante nutre pelo alienado, ou mesmo do simples fato de o alienante julgar o outro genitor indigno do amor da criança.

A depressão, de que pode padecer o progenitor alienante, também é apontada como motivadora da alienação parental, assim como a dificuldade de relacionamento entre os pais. Às vezes, até mesmo a diversidade de estilos de vida é tida como causa da alienação parental e, quando isso ocorre, tal se dá diante do receio que tem o alienante de que a criança possa adotar ou preferir aquele modus vivendi por ele não adotado.

Lamentavelmente, em alguns casos, o fator responsável pela alienação é o econômico: o genitor alienante objetiva obter maiores ganhos financeiros, ou mesmo outros benefícios afins, à custa do afastamento da criança do genitor alienado. Em circunstâncias como essas, se o genitor alienado resistir à chantagem, as portas para a síndrome estarão abertas9.

Quando provocada especificamente pelo pai, a alienação parental ora vem motivada pelo desejo de vingança pela separação, ou pelas causas que a determinaram (e.g. adultério), ora pela necessidade de continuar mantendo o controle sobre a família, e até mesmo para evitar o pagamento de pensão alimentícia.

A alienação parental - seja ela induzida pelo pai ou pela mãe e malgrado motivada por fatores diversos - produz os mesmos sintomas na criança e a afeta de igual modo10.

Todas essas circunstâncias, oriundas de atitude imatura e egoísta, acabam dando ensejo ao alijamento pretendido e, por conseqüência, à síndrome. Se, por um lado, logra o genitor alienante prejudicar o alienado, por outro, torna a criança vítima dessa situação. A partir daí, como veremos, as conseqüências para os filhos - ainda que a ruptura da convivência com o outro progenitor não seja absoluta - são as mais graves possíveis.



3. Graus e extensão da alienação

A alienação nem sempre é atingida em termos absolutos: às vezes a resistência do genitor alienado é de tal ordem que ainda consegue se avistar com os filhos - de modo forçado ou não - em casas de parentes, educandários ou até mesmo em visitários públicos. A alienação parental, no entanto, é, via de regra, alcançada pelo trabalho incansável de destruição da figura do progenitor alienado, promovida pelo progenitor alienante. Tal esforço conduz a situações extremas de alienação, que acabam por inviabilizar qualquer contato com o genitor definitivamente alienado11. Muitas vezes, a resistência oferecida pelos filhos ao relacionamento com um dos pais é tamanha, que a alienação parental acaba por contar, inclusive, com o beneplácito do Poder Judiciário. Não raro, diante dessa circunstância, alguns juízes chegam até mesmo a deferir a suspensão do regime de visitas. É o quanto basta para que se tenha a síndrome instalada em caráter definitivo.

Outro meio de manobra para excluir o outro genitor da vida do filho é a mudança de cidade, estado ou país. Geralmente essa transferência de domicílio se dá de modo abrupto, após anos de vida em local ao qual não apenas o genitor alienante encontrava-se acostumado e adaptado, como também a criança que, de inopino, vê-se privada do contato com o progenitor alienado, com os familiares, com os amiguinhos, com a escola a que já se encontrava integrada, etc. E tudo em nome de vagas escusas: melhores condições de trabalho ou de vida, novo relacionamento amoroso com pessoa residente em cidade diferente e, quase sempre, distante, etc. Nesses casos, adverte Gardner, o juiz deve se mostrar muito atento, para verificar quando se trata de mudança ditada por motivos reais e justificados ou quando ela não passa de subterfúgio para afastar o outro genitor do filho10,12.

Por fim, quando o genitor alienante não logra obter a alienação desejada, esta é alcançada pelo mais trágico dos meios: o assassinato do genitor que se pretende alienar, ou mesmo - o que é mais terrível - dos próprios filhos. É conhecido, em São Paulo, o caso de uma mulher que, inconformada com a perda do marido em decorrência da separação, assassinou os três filhos e, em seguida, suicidou-se. O homicídio e o suicídio perpetrados justificar-se-iam, consoante as palavras por ela deixadas, pelo fato de que, sem a sua presença, ninguém mais saberia cuidar de seus filhos. Daí, por não conseguir mais viver sem o marido,
de quem se separara, entendia ela que os filhos também não teriam condições de continuar vivendo. Foi por essa estapafúrdia e pífia razão que, antes de se suicidar, matara as três crianças. O caso representa, sem dúvida, o grau máximo em que se pode verificar a consumação da alienação parental.



4. Meios para obter a alienação parental

A alienação parental é obtida por meio de um trabalho incessante levado a efeito pelo genitor alienante, muitas vezes até mesmo de modo silencioso ou não explícito. Nem sempre é alcançada por meio de lavagens cerebrais ou discursos atentatórios à figura paterna. Na maior parte dos casos, o cônjuge titular da guarda, diante da injustificada resistência do filho em ir ao encontro do outro genitor, limita-se a não interferir, permitindo, desse modo, que a insensatez do petiz prevaleça.

É curioso observar que, em situações como essas, se indagado o menor acerca dos motivos pelos quais não deseja estar com o outro genitor, nenhuma explicação convincente é fornecida. Algumas vezes a justificativa resume-se no desagrado de comparecer a determinados lugares (casa dos avós, por exemplo); em outras oportunidades, a justificativa encontra amparo na não-participação do genitor em determinadas brincadeiras, ou mesmo no inconformismo com o cumprimento dos deveres escolares imposto pelo outro genitor.

Em outras circunstâncias, o genitor alienante opõe às visitas toda sorte de desculpas: estar a criança febril; acometida por dor de garganta; visitas inesperadas de familiares; festinhas na casa de amigos, etc. Também com freqüência, o genitor alienante vale-se de chantagem emocional para lograr a alienação parental: induz a criança à crença de que, se ela mantiver relacionamento com o genitor alienado, estar-lhe-á traindo, permitindo, desse modo, que ele, genitor alienante, permaneça só, abandonado e, portanto, infeliz.



5. Elementos de identificação da alienação parental

Tendo em vista o casuísmo das situações que levam à identificação da síndrome de alienação parental, a melhor forma de reconhecê-las encontra-se no padrão de conduta do genitor alienante, o qual se mostra caracterizado quando este, dentre outras atitudes: a) denigre a imagem da pessoa do outro genitor; b) organiza diversas atividades para o dia de visitas, de modo a torná-las desinteressantes ou mesmo inibí-las; c) não comunica ao outro genitor fatos importantes relacionados
à vida dos filhos (rendimento escolar, agendamento de consultas médicas, ocorrência de doenças, etc.) d) toma decisões importantes sobre a vida dos filhos, sem prévia consulta ao outro cônjuge (por exemplo: escolha ou mudança de escola, de pediatra, etc.); e) viaja e deixa os filhos com terceiros sem comunicar o outro genitor; f) apresenta o novo companheiro à criança como sendo seu novo pai ou mãe; g) faz comentários desairosos sobre presentes ou roupas compradas pelo outro genitor ou mesmo sobre o gênero do lazer que ele oferece ao filho; h) critica a competência profissional e a situação financeira do ex-cônjuge; i) obriga a criança a optar entre a mãe ou o pai, ameaçando-a das conseqüências, caso a escolha recaia sobre o outro genitor; j) transmite seu desagrado diante da manifestação de contentamento externada pela criança em estar com o outro genitor; k) controla excessivamente os horários de visita; l) recorda à criança, com insistência, motivos ou fatos ocorridos pelos quais deverá ficar aborrecida com o outro genitor; m) transforma a criança em espiã da vida do ex-cônjuge; n) sugere à criança que o outro genitor é pessoa perigosa; o) emite falsas imputações de abuso sexual, uso de drogas e álcool; p) dá em dobro ou triplo o número de presentes que a criança recebe do outro genitor; q) quebra, esconde ou cuida mal dos presentes que o genitor alienado dá ao filho; r) não autoriza que a criança leve para a casa do genitor alienado os brinquedos e as roupas de que mais gosta; s) ignora em encontros casuais, quando junto com o filho, a presença do outro progenitor, levando a criança a também desconhecê-la; t) não permite que a criança esteja com o progenitor alienado em ocasiões outras que não aquelas prévia e expressamente estipuladas12,13.



6. Conseqüências da alienação parental

Consumadas a alienação e a desistência do alienado de estar com os filhos, tem lugar a síndrome da alienação parental, sendo certo que as seqüelas de tal processo patológico comprometerão, definitivamente, o normal desenvolvimento da criança11,13. Gardner anota, a propósito, que, nesses casos, a ruptura do relacionamento entre a criança e o genitor alienado é de tal ordem, que a respectiva reconstrução, quando possível, demandará hiato de largos anos12.

A síndrome, uma vez instalada no menor, enseja que este, quando adulto, padeça de um grave complexo de culpa por ter sido cúmplice de uma grande injustiça contra o genitor alienado. Por outro lado, o genitor alienante passa a ter papel de principal e único modelo para a criança que, no futuro, tenderá a repetir o mesmo comportamento.

Os efeitos da síndrome podem se manifestar às perdas importantes - morte de pais, familiares próximos, amigos, etc. Como decorrência, a criança (ou o adulto) passa a revelar sintomas diversos: ora apresenta-se como portadora de doenças psicossomáticas, ora mostra-se ansiosa, deprimida, nervosa e, principalmente, agressiva. Os relatos acerca das conseqüências da síndrome da alienação parental abrangem ainda depressão crônica, transtornos de identidade, comportamento hostil, desorganização mental e, às vezes, suicídio. É escusado dizer que, como toda conduta inadequada, a tendência ao alcoolismo e ao uso de drogas também é apontada como conseqüência da síndrome.

Por essas razões, instilar a alienação parental em criança é considerado, pelos estudiosos do tema, como comportamento abusivo, tal como aqueles de natureza sexual ou física9-13. Em grande parte dos casos, a alienação parental não afeta apenas a pessoa do genitor alienado, mas também todos aqueles que o cercam: familiares, amigos, serviçais, etc., privando a criança do necessário e salutar convívio com todo um núcleo familiar e afetivo do qual faz parte e ao qual deveria permanecer
integrada.



7. A repressão judicial à alienação parental

Uma vez identificado o processo de alienação parental, é importante que o Poder Judiciário aborte seu desenvolvimento, impedindo, dessa forma, que a síndrome venha a se instalar. Via de regra, até por falta de adequada formação, os juízes de família fazem vistas grossas a situações que, se examinadas com um pouco mais de cautela, não se converteriam em exemplos do distúrbio ora analisado.

É imperioso que os juízes se dêem conta dos elementos identificadores da alienação parental, determinando, nesses casos, rigorosa perícia psicossocial, para então ordenar as medidas necessárias para a proteção do infante. Observe-se que não se cuida de exigir do magistrado - que não tem formação em Psicologia - o diagnóstico da alienação parental. No entanto, o que não se pode tolerar é que, diante da presença de seus elementos identificadores, não adote o julgador, com urgência máxima, as providências adequadas, dentre elas, o exame psicológico e psiquiátrico das partes envolvidas.

Uma vez apurado o intento do genitor alienante, insta ao magistrado determinar a adoção de medidas que permitam a aproximação da criança com o genitor alienado, impedindo, assim, que o progenitor alienante obtenha sucesso no procedimento já encetado.

As providências judiciais a serem adotadas dependerão do grau em que se encontra o estágio da alienação parental. Assim, poderá o juiz: a) ordenar a realização de terapia familiar14, nos casos em que o menor já apresente sinais de repulsa ao genitor alienado; b) determinar o cumprimento do regime de visitas estabelecido em favor do genitor alienado, valendo-se, se necessário, da medida de busca e apreensão; c) condenar o genitor alienante ao pagamento de multa diária, enquanto perdurar a resistência às visitas ou à prática que enseja a alienação; d) alterar a guarda do menor, principalmente quando o genitor alienante apresentar conduta que se possa reputar como patológica, determinando, ainda, a suspensão das visitas em favor do genitor alienante, ou que elas sejam realizadas de forma supervisionada15; e) dependendo da gravidade do padrão de comportamento do genitor alienante ou diante da resistência dele perante o cumprimento das visitas16, ordenar sua respectiva prisão.

Em relação à possível alteração da guarda, aventada anteriormente no item d, não se registra nos anais de nossa jurisprudência decisão de modificação de guarda ditada exclusivamente pelo impedimento aposto às visitas por parte do titular da custódia. Há um único e isolado julgado em que a alteração da custódia encontrava um de seus fundamentos em tal circunstância, mas a razão primeira da decisão foram os maus tratos
do guardião à filha menor14.

Muito embora, no Direito Brasileiro, a oposição e impedimento ao exercício do direito de visitas não seja considerada crime - ao contrário do que sucede em outros países, como explicitado abaixo, entre nós o apenamento pode vir alicerçado no descumprimento de ordem judicial, delito contemplado no art. 330 do Código Penal15.

1. No Código Penal da Noruega: "§ 216. Any person who causes or is accessory to causing a minor to be unlawfully deprived of or kept deprived of his parents' or other authorized persons' care shall be liable to imprisonment for a term not exceeding three years. If there are extenuating circumstances, fines may be imposed. A public prosecution will only be instituted when requested by an aggrieved person."
2. No Código Penal da Califórnia: "278.5. (a) Every person who takes, entices away, keeps, withholds, or conceals a child and maliciously deprives a lawful custodian of a right to custody, or a person of a right to visitation, shall be punished by
imprisonment in a county jail not exceeding one year, a fine not exceeding one thousand dollars ($1,000), or both that fine and imprisonment, or by imprisonment in the state prison for 16 months, or two or three years, a fine not exceeding ten thousand dollars ($10,000), or both that fine and imprisonment. (b) Nothing contained in this section limits the court's contempt power. (c) A custody order obtained after the taking, enticing away, keeping, withholding, or concealing of a child does not constitute a defense to a crime charged under this section."
3. No Código Penal da Alemanha: "235. Sustracción de menores de edad (1) Con pena de privación de la libertad hasta cinco años o con multa será castigado: 1. quién sustraiga o retenga a una persona menor de 18 años con violencia a través de amenaza con un mal considerable o por medio de astucia, 2. quién sustraiga o retenga a un niño sin ser su familiar de sus padres, de un padre progenitor, del su tutor o de su curador. (2) De igual manera será castigado quién 1. sustraiga un menor a los padres, a sus padres a uno de los padres progenitores, al tutor o al curador con el fin de llevarlo al extranjero, o 2. retenga un niño menor de sus padres, de uno de sus padres progenitores, del tutor o del curador, en el extranjero después de haber sido llevado allá o se haya trasladado allá. (3) En los casos del inciso 1 numeral 2 y del inciso 2 numeral 1, la tentativa es punible. (4) Se impondrá pena privativa de la libertad de uno a diez años cuando el autor: 1. conduzca a la víctima por el hecho a peligro de muerte o de un grave perjuicio de salud o a un perjuicio considerable para su desarrollo físico o psíquico, o 2. cometa el hecho con ánimo de lucro o con el propósito de enriquecerse a si o a un tercero (5) Si el autor por el hecho causa la muerte de la víctima, entonces el castigo es pena privativa de la libertad no inferior a tres años. (6) En casos menos graves del inciso 4 se impondrá pena privativa de la libertad de 6 meses hasta cinco años; en casos menos graves del inciso 5 la pena privativa de la libertad es de uno hasta diez años."
4. Código Penal Francês: "Article 227-5 Le fait de refuser indûment de représenter un enfant mineur à la personne qui a le droit de le réclamer est puni d'un an d'emprisonnement et de 15.000 euros d'amende."



8. O papel do advogado diante da alienação parental

Identificar

a alienação parental e evitar que esse maléfico processo afete a criança e se converta em síndrome são tarefas que se impõem ao Poder Judiciário, que, para esse fim, deverá contar com o concurso de assistentes sociais e, principalmente, de psicólogos. Por sua vez, ao advogado que milita na área do direito de família, quando procurado pelo genitor alienante para a defesa de seus direitos, tarefa de menor dificuldade e importância não lhe é destinada.

Quando está patente o processo de alienação parental, promovido pelo progenitor alienante, não se permite aos advogados, em nome de uma suposta defesa de seus direitos, prejudicar aquele que é, em tais casos, o interesse maior a ser protegido: o do menor. Em tais situações, a recusa ao patrocínio da causa do progenitor alienante impõe-se, também por força do comando constitucional que erige à condição de dever da sociedade - e, por conseguinte, de todo e qualquer cidadão, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar2.



Referências

1. Ministério da Saúde. Estatuto da Criança e do Adolescente. Brasília: Ministério da Saúde; 1990. Arts. 4º e 5º. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.
2. Constituição da República do Brasil, art. 227, p. 148, 1988.
3. Stan-Hayward FNF. A guide to the parental alienation syndrome. Disponível em URL: http://www.fact.on.ca/Info/pas/hayward (acesso 8 jul 2006)
4. Gardener RA. Recent trends in divorce and custody litigation. Academy Forum 1985;29:3-7.
5. Texas Fathers for Equal Rights. The father guide: coping with parental alienation. Disponível em URL: http://www.startext.net/home/tfer/FG3.htm
6. Brandes JR. Parental alienation. NY Law Journal [periódico on line] March 26,2000:1. Disponível em URL: http://www.brandeslaw.com/parental 1%20 alienation.htm (acesso 8 jul 2006)
7. Darnall D. Parental Alienation Conference; 1999. Disponível em http://www.fact.on.ca/info/pas/darnall.htm (acesso 8 jul 2006)
8. Darnall D. Parental alienation: not in the best interest of the children. LD Law Rev 1999;75:323-64.
9. Kopetski LM. Identifying cases of parental alienation syndrome. Part II. The Colorado Lawyer 1998;27:63-6.
10. Gardner R. Family therapy of the moderate type of parental alienation syndrome. Am J Fam Ther 1999;27:194-212.
11. Darnall D. Symtoms of parental alienation. PsyCare: Parental Alienation Page; 1997. Disponível em URL: www.parentalalienation.com/PASfound3.htm (acesso 8 jul 2006)
12. Gardner R. Family therapy of the moderate type of parental alienation syndrome. Addendum I to 2nd ed. June 1999. p.1.
13. Lowenstein F. Parental alienation syndrome: a two step approach toward a solution. Contemporary Family Therapy 1998;20:505-20.
14. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Ap. Cível nº 598.242.972, 8ª. CC, Rel. Dês. Alzir Felippe Schmitz, j. Ação cautelar inominada. Pedido de entrega de declaração de nascimento pelo hospital onde se deu o parto. Art. 228 do ECA. 13/4/2000.
15. Código Penal Brasileiro, art. 330.

Dra. Priscila Maria Pereira Corrêa da Fonseca
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica, Doutora em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo e Professora de Direito Comercial na Faculdade de Direito da USP

Publicado originalmente em: Pedriatria (São Paulo) 2006;28(3)162-8

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